Desperto às 2:15am, quinze minutos antes do toque de despertar Mongol às 2:30am. Não havia conseguido dormir naquela noite, tamanha era a minha ansiedade. Todos meus sentidos estavam a pleno vapor. Fora da minha tenda, ouço passos mais acelerados e vozes em idiomas que não entendo.
Sinto as partes do meu corpo, meus pés, a unha do meu dedão (que sempre quer dar o ar da graça), pernas, joelhos, coxas, sinto meu peito inflando a cada respiração. Minha cabeça está tranquila, calma como as águas do Lago Hogsvol.
Como sempre faço, peço proteção com uma prece. Começo a me montar para o inicio de uma longa jornada, lambuzo meus pés de hipoglós, coloco a meia surrada pelos treinos, visto a bermuda testada inúmeras vezes, assim como a camiseta costurada – “aquela que chamamos de jogadeira, sabe?”. Finalmente, calço meu tênis favorito e ponho o buff na cabeça.
Pergunto pra Nana se vai dar pra ela correr os 42k e me vem a noticia que temia receber: ela fez um sinal de negativo com a cabeça, estava sem forças devido a uma intoxicação alimentar. No fundo no fundo, já estava me preparando para isso. Para confortá-la, disse que correria por nós.
Fui ao banheiro, tomei café junto com os demais atletas, voltei ao banheiro e parti pra minha tenda, precisava caprichar no aquecimento e encontrar meu equilíbrio.
Pelo 18º. ano consecutivo, a largada da prova iria acontecer no Acampamento Toilogt às 4am. Desta vez, seria sob chuva. Representando o Brasil, me junto aos atletas de mais de 25 países, entre eles os mongóis, um japonês e um chinês, os favoritos pra ganhar a prova.
Começa a contagem regressiva… 10,9,8… Desta vez fico no meio pelotão…
7,6… BUUUMMMM… Um pelotão formado por mongóis e japoneses parte em disparada.
Era preciso ter muita atenção nos primeiros 3km, pois estávamos dentro de uma floresta fechada, sob chuva. Sigo com meus passos, tomando cuidado pra não pisar em falso e muito menos em alguma raiz, pois um pequeno acidente pode ser o fim da prova.
Tenho meus olhos abertos ao máximo. Na minha frente segue um dos mongóis. Meu coração parece que vai pular do peito, tamanho é o ritmo dos batimentos.
Sinto minhas pernas fortes e, na primeira oportunidade, acabo passando pelo mongol, talvez um erro da minha parte, pois um local deve saber bem o caminho. Salto galhos, pulo raízes e, quando a floresta termina, tomo a trilha da direita, quando o certo, como iria descobrir, seria pegar a trilha da esquerda. Acho estranho, não vejo mais as marcações da prova, até que um cavaleiro mongol, um dos voluntários, grita me indicando o caminho certo.
Pego um estradão rumo ao PC Chichee no km12 antes da primeira montanha. Logo alcanço e passo o atleta da Mongólia. No meu campo de visão há um atleta magro, corpo forte, todo paramentado com os produtos que os melhores ultras usam. Sem dúvida, um atleta disposto a dar seu recado.
Quando o alcanço, vejo que se trata de um japonês que, durante os dias que antecederam a prova, circulava com camisetas das provas que havia feito, todas com mais de 50k. Em silêncio, corro ao lado dele por quase 7km. Ouvimos apenas o barulho de nossas passadas e nossas respirações, como uma sinfonia. Passamos pelo primeiro PC em Chichee sem sequer pararmos.
Em alguns momentos, tomo sua frente e, não demora muito, lá está o japonês voador ao meu lado. Quando a subida começa, ele simplesmente dispara na minha frente.
Resolvo seguir no meu ritmo, trotando no começo das subidas e marchando firme quando elas ficavam mais íngremes.
Lá pelo km17, passo pelo atleta mongol campeão do ano passado, faço um positivo a fim de saber se está tudo bem e ele me responde com o mesmo sinal.
É um prenúncio de que algo diferente está por acontecer. Penso comigo, Cição foca apenas na sua estratégia, esqueça qualquer outro tipo de pensamento.
Chego ao ponto mais alto da prova e lembro que havia prometido a meu técnico que faria uma foto ali para mandar aos amigos, mas infelizmente ainda está escuro, não fica boa – tudo bem, promessa é promessa!
Quando o primeiro downhill começa, vejo as luzes da headlamp do japonês e de mais um atleta indo bem mais a frente e penso, Esses dois não estão pra brincadeira… E nem estavam os atletas atrás de mim, pois na minha o campeão do ano passado e o atleta chinês vinham na minha bota.
Começo a me divertir na descida. Me sinto bem e, nesse momento, resolvo dividir a prova em 10 provas de 10k, para dessa forma poder reagir positivamente a cada etapa completada. Bato no peito, abro as mãos e fecho os dedos contando as etapas finalizadas, dedicando cada uma a alguém da família ou a um dos amigos.
Já no PC Ongolov, no km 23, o dia começa a amanhecer. Passei pelo posto pegando uma batata com sal e parto rumo ao segundo pico. A chuva havia parado e o clima é gostoso pra correr, faz um certo friozinho.
Havia perdido de vista os atletas que iam a minha frente e os que estavam atrás também. Não demora para que eu alcance a segunda montanha.
Quando o dia clareia, posso perceber o porque de a prova ter o seguinte slogan: “The world’s most beautiful 100k run”.
Corro cercado por montanhas, através de trilhas cobertas por flores e, ao fundo, toda a imponência do Lago Hogsvol.
Perto do km 35, passo por uma árvore que os mongóis chamam de “Ovo”, o que para o xamanismo tem um significado de paz, proteção. Segundo as tradições, toda vez que alguém avista uma dessas, é preciso dar três voltas ao seu redor pra que se tenha proteção.
Naquele momento, não tive dúvida, lá fui eu dar minhas três voltinhas.
E nessa, vejo passando um dos atletas da Mongólia, passando direto, aí pensei comigo…Ué, ele não vai dar as três voltinhas? Vai porra nenhuma! Passou por mim que nem uma bala e deve ter pensado, “Esse cumpridão aí parece maluco”.
continua…
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