Salomon Ultra Pirineu – 110K – 6.798m Montanha acima!

Publicado em 12 de outubro de 2018

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Em um jogo de detalhes, você precisa ter atitude de protagonista!

A Ultra Pirineu foi um imenso jogo de detalhes que começou muito antes do que imaginava.

Devido a uma cirurgia que fiz no meu pé no fim de 2017, comecei a preparação um pouco tarde para uma prova deste tamanho.

Alguns meses sem treinar e com muito medo de não voltar a correr, dei o primeiro trote somente no final de fevereiro. Ao conversar com o meu técnico sobre quais opções seriam possíveis em 2018, surgiu a Ultra Pirineu e seus temíveis 110 k com 6.798 m de subidas acumuladas.

No fundo no fundo, sabia que podia contar com a minha experiência para este desafio, pois, já se vão 9 anos em corridas de montanha. Mas ao mesmo tempo, me “cagava” de medo e sabia que não teria margem de erro na minha preparação.

Foram centenas e centenas de kms, milhares e milhares de subidas e descidas, vídeos e percursos estudados.

Sou feito de emoção e cicatriz…

A Salomon Ultra Pirineu é a prova mais prestigiada da Espanha, realizada em Bagá. Uma pequena e simpática cidade cravada nos Pirineus, essa prova já teve a honra de receber os principais nomes do Trail Mundial. Kilian Jornet e a sua namorada Emilie Frosberg detém o recorde. A embaixadora da prova é a principal atleta catalã, Nuria Picas, campeã da Ultra Maratona do Mont Blanc. E, bem,  eu fazia parte dos 1.000 atletas vindos de todas as partes do globo para a 10ª edição.

As 3:50 da madrugada toca o meu despertador, de fato não havia dormido bem. Com o sono leve, fui despertado algumas vezes. A primeira foi para atender um telefonema da minha filha e a segunda foi por conta de uma queima de fogos na cidade.

O despertador tocou e pensei comigo: “finalmente chegou o grande dia”, dou uma olhada no meu celular e “pipocam” mensagens incentivadoras de amigos torcendo por mim. Tomo uma chuveirada para despertar os meus músculos. A temperatura do quarto é agradável, dou uma última verificada na previsão do tempo e vejo que a chuva dará o ar da graça, lá pelas cinco da tarde. Decido usar camiseta de manga curta e um manguito.

Nesta prova, pude contar com apoio de uma equipe de anjos. Formada pela Sofia, Nana e Mario. Eles teriam a difícil missão de me acompanhar ao longo dos 110 km, me encontrando nos postos de controle ao longo da prova. De fato era um luxo ver caras conhecidas e que te querem bem. Segui rumo à arena de largada junto do Dr. Rafa, um querido amigo que esta prova me deu. Médico especialista em cirurgia de mão e um apaixonado pelas provas de montanha. Esta era sua 15ª prova no ano, o cara é um monstro. Chegando lá, já conseguíamos ver dezenas de lanternas acesas e sintimos aquela adrenalina que ronda toda largada.

Dr. Rafa na sua 15 prova do ano , Mario e eu!
Mario, Dr. Rafa e eu.

Dou uma última verificada nos meus itens obrigatórios. Me preocupo por não ter conseguido ir ao banheiro. Neurose de corredor. Mentalizo todas as passagens até a metade da prova.
Falta pouco menos de 5 minutos para largarmos e Depa, o locutor da prova famoso no mundo do trail por usar um chapéu de cowboy, solta a voz agitando os atletas e a musica de “Trevor Jones –  Promentory ” do filme “O Último dos Moicanos” toca arrepiando à todos, e não demora para eu ter os meus olhos cheios de lágrimas”.
Aquela ansiedade da lugar a uma imensa alegria ao ouvirmos a contagem regressiva pois, todos ali éramos iguais e só queríamos uma coisa: correr por várias horas e conseguir o feito de chegar em Bagà novamente.
Partimos rumo à subida mais longa da prova, ainda no escuro centenas de atletas se aglomeravam a fim de achar o seu espaço na trilha. O céu está repleto de estrelas e a lua se fazia presente, o que seria um prenúncio de um lindo dia.

Eyes on the prize! Horas de montanha pela frente!
Eyes on the prize! Horas de montanha pela frente!

Ainda no escuro, passo uma hora abaixo do que tinha planejado pelo Refúgio Rebost, o primeiro da prova. Trabalhando bem com os meus bastões, sigo focado rumo ao Refúgio Niu, o mais alto da prova com 2.520m de altitude. Os primeiros raios de sol surgem atrás das montanhas proporcionando uma das imagens mais lindas e o meu coração bomba de alegria. Passo por famílias inteiras e vários entusiastas da montanha que acordaram de madrugada para nos ver passando. Gritos de “Ânimo, Vamos, Vamos” serviam de combustível para mim.
O clima que impera entre os atletas amadores é de extrema cordialidade. O ritmo é forte, não se perde uma passada à toa. Tenho em mente que em todos os PC’s, vou usufruir de tudo o que o meu corpo esta pedindo, procurando levar o menos de peso possível na mochila. Avisto o Refúgio Niu e o frenesi das pessoas é imenso. Encontro a minha equipe, o que pra mim foi uma descarga de adrenalina. Ainda muito muvucado, pude aproveitar pouco do refúgio. Saí dali pensando: “fica ligado para não errar no próximo!”

chegando no refugio Niu a 2.500m de altura
Chegando no Refúgio Niu à 2.500m de altura

Começo a encarar uma descida extremamente técnica até o PC 3 Serrat, onde o horário de corte era as 15:30 pm. Procuro fazer uma descida cuidadosa, com movimentos calculados para poupar os meus quadríceps. As paisagens são lindas: cavalos selvagens surgem do nada, vacas com os seus sinos enormes no pescoço fazem o seu ballet. Elas nos olham querendo saber quem são esses intrusos em seu habitat?!
Chego ao PC Serrat as 11:13 da manhã praticamente junto com um dos atletas que havia particiapado de todas as edições desta prova e estava sendo homenageado pela patrocinadora em suas ações de marketing. Neste ponto, procuro caprichar na alimentação e na hidratação. Estava determinado a usar o menos de gel possível.
A próxima etapa era chegar no km 40. Com o passar das horas e sem tantos atletas juntos, o meu desempenho foi ficando mais constante, corria mais livre. Não demorou muito e revi a minha equipe que correu comigo alguns quilômetros. Normalmente eu andaria naquele trecho, mas com eles ali, arrumei forças e cheguei bonito em Bellver. Este PC ficava dentro de uma ginásio. Os atletas tinham que passar por um corredor cheio de pessoas nos aplaudindo. Fazia um calor infernal. Logo depois de sair de Bellver, considerei a parte menos empolgante da prova, tínhamos pela frente um estradão e um morro a cima até Cortais.
Cheguei lá e, na minha opinião junto com o Refúgio Niu, é um dos mais lindos da prova. Neste ponto procurei não demorar muito. Membros da organização da prova checaram alguns equipamentos obrigatórios, quando isto ocorre é porque provavelmente você vai ter que usa-los . E a minha experiência me dizia para ficar esperto pois, algo iria mudar. Comecei a subir sentido a Montanha Aguilló e me lembrava do conselho da Manuela Vilaseca de que aquela subida não seria nada fácil. O tempo começou a mudar rapidamente. Um vento cortante e alguns pingos de chuva me fizeram tirar o anorak da mochila. Me sentia um nada em meio aquela imensa montanha de pedras. O vento seguia na tentativa de rasgar a minha pele e a subida parecia interminável.
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Respirava fundo várias vezes, focava em mensagens positivas, tentava ver o copo cheio naquele momento, mas confesso que não foi nada fácil. Vários atletas me passaram. No fundo isso não importa, a não ser pelo fato de eu perceber que não estava indo nada bem. Nós, ultramaratonistas sabemos que por vezes vamos ao fundo do poço em provas tão longas e o segredo é não ficar abraçando o capeta por muito tempo, temos que sair rápido dali.  Meus passos continuavam lentos. Um fotógrafo fez o registro do momento, mas o meu número de peito estava coberto pela jaqueta, então dificilmente irei achar essa foto em que eu abraçava o “belzebu”. Ao final daquela subida, dei um sonoro berro “PQP”. Sentia um desconforto, precisava ir ao banheiro. Parei atrás de uma moita e juro que tentei. Como posso assim dizer…passar um fax? mandar um número 2? Sim bem isto, mas não consegui, rs. Só expus a minha bunda branca para uma meia dúzia de ultras verem.
Até chegar ao km 74 em Gosól, foi uma verdadeira epopéia. Aqueles 10 kms de descida pareciam uma maratona, não chegava nunca. Gosól era a principal parada da prova pois, ali encontraria o meu drop bag com itens essenciais para continuar a minha jornada. Algumas vezes tive dúvida se conseguiria seguir adiante. De fato correr uma ultra maratona é muito mais coração do que razão.
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Cheguei ainda de dia. Parecia um campo de refugiados, dezenas de atletas aglomerados. Uns descansavam, outros comiam e trocavam de roupa. Naquele ponto não consegui comer nada do que era oferecido. No meu planejamento, preferi comer a comida que tinha levado. O que me serviu de um grande alívio. Ali, exatamente naquele lugar foi uma mistura de decisões, enquanto o Mario me perguntava do que precisava, eu só pensava em tentar comer algo. Depois de não conseguir comer nada pois, o macarrão estava sem nenhum tempero, percebi que tinha linguiça espanhola, mas achei arriscado demais pra mim, rs. O Mario abre meu drop bag e fala assim: “Cição tem isso aqui”. Era uma comida especial, daquelas tipo de astronauta. Precisava de água quente para prepara-la, coisa que não tinha. Então, usei o caldo que a organização oferecia e coloquei dois generosos copos dentro da embalagem e esperei uns 5 minutos para comer tudo o que podia.

Em tempo, precisava muito ir ao banheiro e quando estava literalmente naquele momento, surge dois moleques fazendo arte pela janela acima da minha cabeça. Eles riam e falavam algo em um bom catalão. Só tive tempo de falar: “saiam daqui moleques FDPs” hahahahahaha. Era um sinal que estava vivo novamente.

Os dois próximos PC´s passaram rápidos, Estasen e Gresolet no km 86. A noite ja havia chegado e com ele a chuva misturada com neblina. De Gresolet a Vents não se enxergava um palmo à frente do nariz. Era uma descida muito técnica, single track mesmo sabe? Colocava a luz da minha headlamp no mais baixo, igual como o meu falecido pai, Seu Raimundo, fazia quando dirigia o seu Mercedão pelas rodovias do Brasil. Mas mesmo assim não fazia muito efeito. Procurei ficar atrás de dois atletas que desciam com maestria. Decidi que ali tinha tinha que dar o meu melhor pois, eu já tinha feito as descidas mais técnicas e importantes do Brasil. Era a hora de mostrar que tinha carta pra trucar, rs.
Ao chegar em Vents tive uma grata surpresa de encontrar com a minha equipe pela última vez. Era um PC no meio do nada, pequeno e friorento.  Troquei a minha segunda pele porque a chuva já tinha parado e lembrei das palavras da Sofia e da Manu. Tinham mais duas subidas para enfim chegarmos em Bagà, mas eram subidas de, pelo menos, 1h30m cada uma. Por estar com mais de 100 kms de prova e muitas horas acumuladas, enfrenta-las, não seria nada fácil. A primeira até o Refúgio St. Jordi, o último da prova, eu esperava umas 2h30m. Não olhei no relógio, estava focado em cada passo daquela subida, que pelo gráfico não parecia assustar mas ao vivo era interminável. Ao chegar, dei um lap no relógio e vi 1h26m. Pensei: “caracas Cição, você está forte. Agora falta somente mais uma e derradeira subida”.
Naquele PC  ingeri o último gel e coloquei bastante Pepsi (Por que não?) na boca e misturei com ele. Foi como uma bomba no estômago, quase vomitei. A voluntária da prova me ofereceu algo e só tive tempo de agradecer e sair dali urgente. Foi um horror.
De fato corremos mais com o coração do que com as pernas. Naquela altura ja tinha batido com a minha cabeça num tronco e pela força da pancada devia ser grave. Mas no fundo do meu coração, não queria parar. Apesar de muito tonto. resolvi continuar. Ali, corria praticamente sozinho. Encarei a penúltima subida suando grosso, procurava não dar bobeira em nenhuma passada. Era uma travessia de rio atrás da outra, cravava meus bastões no meio da água para me equilibrar​ e passava por cima das pernas evitando molhar os meus pés.
Naquela altura minhas pernas berravam, queriam parar e o meu coração falava para continuar. Para variar, conversava com o meu pai, com a minha mãe e as minhas filhas vinham na cabeça. Faltavam menos de 5 kms, era uma perna de asfalto e um pouquinho de trilha. Por fim, acabei alcançando alguns atletas.
Entrei na cidade e ali um leitor de chip apitou, avisando a todos os que me acompanhavam que eu estava finalmente chegando. Ao virar à esquerda pelo caminho mais rápido, tomei um sonoro aviso de que estava indo pelo caminho errado! Tinha mais um quilômetro e pelo menos uns 400 metros de subida, pensei comigo “isso era mesmo necessário?”. Ao terminar a subida, entrei no funil da linha de chegada e algumas pessoas aplaudiram. Uma mistura de emoção e alívio tomaram conta de mim quando vi o pórtico. Agradeci aos céus por tamanho feito realizado.

emoção a flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena!
Emoção à flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena!

Só pensava comigo, meu Deus eu consegui!
É isto…

ahhh…alguns números do Salomon Ultra Pirineu 110k

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Cição.

 

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