Finalmente havia chegado o grande momento, estavam todos alinhados para a largada, quando o Stepan diretor da prova começou a contagem regressiva, uma calma fora do comum baixou em mim, passei por baixo do pórtico escutando um VAI CIÇÃÃÃÃÃOOOOOO, era Lú da Readyfor dando aquela força, foi um gás a mais para ir frente. De cara, o primeiro pelotão imprimiu um ritmo tão forte como numa prova de 10km, que a primeira vista parecia ter uns 30 atletas, eu vinha no segundo pelotão, logo atrás de um chileno.
De cara fomos colocado nos campos do fiord, corríamos por uma linda trilha que adentrava uma linda floresta. Ao estudar o mapa sabia que não demoraria muito teríamos uma primeira subida, e com 8km estaríamos no acampamento alto, o chileno que vinha na minha frente adotara um ritmo forte no plano, mas não repetia o mesmo ritmo nas subidas, isso fez com que eu o passasse em uma das subidas.
O frio era intenso, mas até quele momento não chovia, passávamos por alguns atletas que faziam os 160kms, eu pensava, caracas esses caras passaram a madrugada inteira correndo, são brutos demais, fiquei muito feliz que cruzei o Kledir, atleta parceiro da assessoria TRB que encarava os 160km, estava com a cara boa, nos cumprimentamos rapidamente e cada um seguiu focado na sua estratégia, ele sempre me fala que eu o inspiro, que nada, ele que inspira todos nós.
Na floresta e senti algo estranho caindo do céu, algo que não era chuva, achei que fosse pólen ou algumas flores que pudesses estar caindo das arvores chacoalhadas pelos ventos, não era nada disso, era NEVE, o que até então era previsão, se tornava real, estava nevando. Tratava de me hidratar de 20 em 20 minutos e de comer para manter o meu corpo aquecido, dica essa vinda do meu técnico (Cição, coma sem medo).
Terminado a floresta entramos em alta montanha, o frio era tão intenso, que tratei de proteger rapidamente todas as extremidades, naquele momento havia entendido porque todos os itens obrigatórios realmente são OBRIGATÓRIOS, até o óculos de sol constava na lista, vocês devem estar se perguntando, porque diachos um óculos de sol com esse tempo? Pois bem se não fosse isso, eu teria imensa dificuldade de correr em campo aberto com aquela tempestade de neve vindo na direção contra.
Eu só pensava em me manter focado e ao mesmo tempo me imaginava o quão pequeno nós somos frente a força da natureza. É claro que a montanha não queria nenhum intruso e eu só pensava em sair dali o mais rápido possível dali, Vários pensamentos passavam pela minha cabeça, me sentia um Waldemar Niclevitz, por vezes um Kilian Jornet, pensei comigo, CARALHO que louco é isso, correndo bem em alta montanha, navegando com qualidade para não se perder. Mandava boas vibrações para os atletas que vinham atrás, torcia para que os mesmos se mantivessem calmos para enfrentar aquela parte da prova que sem duvida nenhuma era a mais desafiadora.
Passei pelo PC mais alto da prova (leia-se um barraca com dois montanhistas fotografando os atletas que me perguntaram se estava tudo bem comigo), respondi com um sinal de positivo e segui em frente, tentei fazer pegar um vácuo de um outro atleta e me revezar com ele afim de enfrentar a forte nevasca, mas o ritmo dele era bem mais forte que o meu. Confesso que não sei quanto tempo levei nessa parte da prova (até da para saber, mas não quero ver isso nesse momento), mas quando saí de lá, senti um tremendo alivio e muito feliz de ter tomado as decisões certas.
Ao sair da montanha entramos numa floresta com o temido charco, sabe aquela sensação de ora correr num colchão de mola, ora correr numa areia movediça, sim, essa parte foi bem técnica, alcancei um argentino e ao passa-lo “PIMBA” fui de cara no chão.
O cara me perguntou se estava bem eu disse SI SI SI COMO NO? Ri de mim mesmo e segui amarradão na prova, tentando traçar um raciocínio logico de como encarar aquele tipo de piso, para mim era uma incógnita, por vezes atolava a minha perna até o joelho, por outras pulava sem parar.
Seguimos avançando, e a água do meu camel back havia acabado. Usando da minha água reserva que era a minha garrafinha que carregava na parte da frente da minha mochila, hesitei em me reabastecer por duas vezes, mas tão logo dei a primeira golada na garrafinha tratei de ir repondo a cada corredeira que via, (dica valiosa 3: havia estudado e confirmado com o meu técnico que no caminho teríamos vários pontos de água natural para se abastecer).
Numa prova de ultra distância tenho tempo de pensar em muitas coisas, por vários momentos pensava nas minha filhas, a minha doce Valentina e na sapeca e levada da breca Rebecca, sorrisos surgiam, misturados com lágrimas de saudades dos que se foram, não só os entes queridos, mas os amigos e uma amiga especial onde os kms em que percorria eram em sua homenagem.
Corria por uma trilha técnica que por vezes nos desafiava a pular troncos e escapar das armadilhas impostas pela natureza, era algo no qual os corredores precisavam estar preparados, de tão belo este lugar me lembre da floresta que aparece no filme Nárnia. Continuava na perseguição de dois corredores, que mais tarde viria a saber que um deles, era da minha categoria. Poucos antes de chegar a Estancia Perales atravessamos um rio com agua até o joelho, onde uma equipe japonesa de televisão acompanhava um atleta símbolo do japão Kaburaki campeão e embaixador do Ultra Trail du Mont Fuji, não tive duvida, gritei ARIGATÔ rs e como todo povo nipônico, foram gentis acenando com as mãos.
Estancia Perales km 49 – DROP BAG – 15 minutos investidos brilhantemente
Pouco antes de chegar em Perales vinha mentalizando (dica 4: dada pelo Nazário, Cição já mentaliza o que você fará no pC afim de não perder muito tempo). Cheguei na barraca e encontrei com dois atletas. Como já havia mentalizando o que faria nesse posto, foquei primeiro em trocar a tudo que estava molhado, de baixo para cima afim de não esquecer nada. Tirar o tênis foi o mais desafiador, pois um simples gesto de cruzar a perna era suficiente para as cãibras aparecerem, calcei um hoka que era o mais adequado para o longo estradão que teria pela frente, as meias, vesti um underwear que mais tarde me arrependeria rs, além de um calça e dois buFF´s, um deles que era alvo de uma singela homenagem a uma pessoa querida que tinha partido deste mundo 15 dias antes deste desafio. Cometi um erro de não ter colocado uma segunda pele e uma coca cola, no meu drop bag. Havia levado também uma segunda mochila, mas como a primeira estava com tudo tão bem encaixado, resolvi permanecer com a mesma, apenas pegando toda comida e suplementos possíveis existentes na reserva.
O staff me entregou um suco em caixinha, além de uma embalagem (dessas de sanduíches que pedimos pra viagem), quando abri dei de cara com arroz, salames, um ovo cozido e muito milho, não tive duvida, lembrei do meu amigo irmão comedor de milho Moddafoca Thiago “Mini Cooper”, e comecei a rir sozinho, queria ter tirado uma foto, mas o meu celular já não tinha muita bateria e a minha ideia era guardar o que restava para avisar a Nana tão logo chegasse perto da cidade.
Sai dali ainda fazendo digestão de tudo que acabara de comer, conversando com o meu estomago. Sabia que a partir dali a prova se tornaria mental, pura e simples. O Sol havia tomado conta do ambiente e nem parecia que a poucas horas havia enfrentando um clima inóspito. Tinha como estratégia percorrer cada 10km em 1 hora e meia, não sabia dizer se isto daria certo, porém, eu precisava acreditar nisso. Deixava para olhar o relógio a cada intervalo de 1 hora, lá pelo km 60 travei uma boa briga com um argentino, que me passava e que dali a pouco eu dava o troco, era meio como seleção brasileira e seleção argentina, rs isso deve ter durado uns bons 20 km, não consegui acompanha-lo mais, pois aquela brincadeira estava me tirando da minha estratégia.
No alto de uma subida havia chegado no antepenúltimo posto de controle de nome Estancia Puerto Consuelo. Tratei de me reabastecer com água e isotônico, e perguntei quantos atletas haviam passado, o staff me respondeu você é o 9, confesso que retruquei perguntando se ele tinha certeza do que dissera, pois no meu consciente haviam uns 30 atletas pelo menos na minha frente, a resposta foi a mesma, você é o 9. Aquilo acendeu uma chama dentro de mim, a cabeça pedia, “mantenha-se em movimento, não para”, dei um play no meu ipod e a música que tocava era “Running child little wild”, comecei a rir, pois mais selvagem que aquilo que estava fazendo era praticamente impossível, ventos, charcos, neve, rios.
O tempo foi passando, já havia invertido de posição das roupas na minha mochila, o anorak pela outra jaqueta e não demorou eis que surgiu a 5 tempestade de neve durante a prova. Agora o frio voltava com tudo, pois estando em campo aberto o vento era fortíssimo e a noite havia chegado.
O meu estomago reclamava de novo, tratei de tomar um sal de frutas, mas mesmo com um certo mau estar não deixava de comer e nem de tomar gel a cada 1 hora, não podia de jeito nenhum invadir a minha margem de segurança. Já estava com a minha lanterna acesa, a tempestade de neve não havia terminado, olhava para trás para ver se não vinha ninguém, tive a impressão de ter visto duas lanternas correndo rapidamente em minha direção, aquilo me deu um ânimo para me manter correndo.
A estratégia era mais ou menos essa: “Cição, no começo da música você caminha forte e logo corre no restante da musica”….caminhando eu ouvia “nas favelas, no senado” daí começava correr até o final da musica “sujeira pra todo lado, ninguém respeita a constituição” e assim lá fui eu, passo a passo, correndo correndo.
Chegando no asfalto, me deparou com o ultimo posto, posto? Que posto? Havia uma mesa, com um barril de água e outro de Gatorade, e uma barraca que mais parecia estar abandonada, passei direto e entrei no asfalto, peguei o meu celular afim de avisar a minha esposa que estava perto de Puerto Natales, mas como temia o celular já não tinha bateria.
A parte final já no asfalto era um descidão em campo aberto com a cidade no fundo e a baía de Puerto Natales do lado direito, o vento gelado companheiro de toda jornada estava ali presente, procurava seguir as marcações azuis da prova, faltavam poucos kms, mas a sensação era que cada km demorava uma eternidade. Quando cheguei na cidade, meus olhos se encheram de lagrimas, os pensamentos das pessoas queridas, da família, e todos os que me apoiaram tomavam conta. Sabia como chegar na praça onde estaria o pórtico, esperava encontrar poucas pessoas, mas pessoas especiais. E lá estavam da TRB a querida Regina, não demorou e o casal Bianca e Pedro deram aquele carinho e mais especial recebi o abraço e o beijo da minha esposa falando: PQP você é foda mandou muitooo bem!!!
Recebi a minha medalha de um garoto, de bochechas rosadas de frio e dentro uma picape da organização a moça havia me falado que tinha sido segundo na categoria e o 9 no geral. Sonho realizado, ser finisher nessa que foi uma das provas mais roots do hemisferio sul, sem dúvida é algo grandioso.
Pensei muito na palestra do Dr. Gustavo, para enfrentar grandes desafios é preciso gostar de si próprio, a tal da SOLITUDE, é preciso ter FÉ, GARRA, é preciso sentir o FLOW, que pra mim significa estar em equilíbrio fisico, mental e sentimental. Os primeiros kms eu sofri muito, tratei de fazer uma limpeza na minha mente senão não conseguiria chegar, graças a Deus tudo deu certo.
TRISTE NOTICIA
Sim, infelizmente essa prova vitimou o atleta mexicano chamado Arturo, não penso aqui em apontar o meu dedo procurando culpados por essa tragédia, apenas trago uma reflexão. Corro ultramaratona desde 2009, conheço alguns diretores de provas que são amigos e ouvindo muitas das suas histórias, cheguei a conclusão de que trata-se de um meio onde pouco dinheiro se ganha ou na maioria das vezes o que se tem é prejuízo e dor de cabeça, enfim, essas pessoas fazem isso por amor ao esporte, mas que fique claro, que em qualquer prova, a organização tem que investir na segurança dos atletas. O que vi no Fiord foram erros de todos os lados, nos quais eu comento a seguir com os amigos leitores.
Sobre a organização, no momento da retirada dos kits, cada documento solicitado deveria ser averiguado, cada mochila de largada checada, como houve mudança de rota de ultima hora, a participação no congresso técnico deveria ser obrigatória sob pena de punição. No dia da largada, cada atleta deveria ter a sua mochila verificada novamente, e a direção de prova instruir de como estaria o tempo naquele momento. Os postos de controle indicados no mapa deveriam estar nos seus devidos lugares, coisa que não aconteceu pelo menos nos momentos em que corria. A zona de maior risco era conhecida e por isso, deveria haver um posto medico no inicio e outro no final da montanha, além de postos de apoio que deveriam estar no alto da montanha com montanhistas experientes, onde os atletas pudessem ser orientados e rastreados e por ventura socorridos.
Da parte dos atletas, sabemos que este esporte é relativamente novo e que muitos de nós nos aventuramos as vezes por ser legal, as vezes por fazer algo diferente, as vezes para ultrapassarmos os nossos limites. Vi atletas reclamando, da camiseta, do kit da prova, da medalha, blá blá blá, vi atletas, que se quer leram o regulamento da prova, não sabiam dos riscos, e que se quer conversaram com pessoas que fizeram a prova anteriormente, ficaram sem saber o que de fato precisavam para serem auto suficiente, diferente de uma prova de rua, a prova em montanha tem muito mais riscos.
Correr montanha é muito mais do que fazer fotos e postar nas redes sociais e marcar um monte de amigos, é preciso acima de tudo, entender o ambiente no qual estamos inseridos. Saber os seus riscos nos quais estamos envolvidos, nessa prova em questão, tratava-se da segunda edição e as possíveis falhas poderiam acontecer. Querem um exemplo? Lembro do meu técnico me avisando: “Cição não dependa da organização para comer”, só isto, já fez com que eu acendesse um sinal de alerta, larguei com a mochila extremamente pesada e lá mesmo no FIORD soube de brasileiro que passou fome no meio da trilha.
Independente de qualquer coisa, o mais importante na minha opinião, é que se invista em segurança e depois disto garantido se invista em outras coisas, da parte dos corredores, que façamos a seguinte pergunta: Por que diachos eu corro montanha? Por que diachos eu faço ultramaratona? se as respostas forem positivas e partirem do fundo do seu coração ok, passemos ao próximo estágio, o da razão, se pergunte: Eu fiz a lição de casa direito? Estudei , mentalizei a prova? perguntei aos mais experientes?
Que Deus conforte o Arturo e seus familiares.
Por fim…
O meu muito obrigado a que teve a paciência de ler até aqui. Os meus sinceros agradecimentos ao Gabriel Duarte meu instrutor de musculação, ao meu tecnico Sinoca, a Cris Crisinha Cristiane, minha parceira de corrida que enfrentou com brilhantismo seus medos sendo finisher nos 70k, a minha “cumadre” Jôjô que deitou o cabelo, perdeu um dente (que belezinha, tá tudo bem agora), aos amigos da TRB em especial ao Vinicius e Elmo, a Lu da ready for e por fim um abraço quentinho a minha familia em especial a minha esposa que disse palavras mágicas que foram o suficiente para manter a minha chama acesa “VOLTA PRA MIM”.
é isso aeee…that´s all
Cição
próximo desafio – Vamos ao KTR Campos do Jordão e depois para Ásia.
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