Dez meses depois da minha última prova, lá fui eu encarar os 112k da Salomon Ultra Trail, nas montanhas ao redor de Budapeste. Decidi fazer essa corrida meio que por acaso, já que meu plano A era uma prova em Oregon (EUA). Cheguei até a fazer inscrição, mas com o mau tempo previsto por lá, o evento foi adiado e se tornou impossível na minha agenda. Em busca, de um desafio que se encaixasse no período das minhas férias, me deparei com a Hungria.
Foram meses de suor, com treinos de força, alongamento e jornadas solitárias ao longo das madrugadas. Testei novos alimentos e novos equipamentos também. Com a preparação e a periodização feitas, parti rumo à Hungria, mirando a pequena Szentendre, conhecida como a Cidade dos Artistas. Mas poderia se chamar tmabém de Cidade dos Pássaros, pois há muitos e cantam por lá o dia inteiro. Ou Cidade das Igrejas, já que existe uma a cada esquina e por conto do regime comunista ter combatido fortemente a religião, o país é um dos que possui proporcionalmente o maior número de templos, mas também o maior número de ateus.
A Salomon, patrocinadora master dos 112k, era também responsável pelas provas de 54k e 29,5k, além de uma corrida para as crianças. Devido à proximidade de Budapeste, a imensa maioria dos mais de 3 mil atletas, vindos de várias partes do mundo, chegou em Szentendre quase em cima da hora. Era o meu caso, e mesmo assim consegui reservar tempo para circular pela cidade, sentir os ares e captar a essência daquele lugar. Ao passar pela igreja de São Pedro e São Paulo, entrei e fiz minhas orações. Mas algo estranho aconteceu, acendi uma vela branca e a cera derretida ficara vermelha, o que por um momento me remetia a sofrimento e dor. Fiquei ali, intrigado. Pode isso na casa de Deus?! Até que uma senhora veio acender sua vela, que era branca também, e de maneira disfarçada, me pus a espiar. Ela acendeu, passou um pouco e vi que a cera derretida também era vermelha. Tudo bem, acontecia com todo mundo, não era um mau presságio. Mas essa senhora, eu ainda me ouvia dizendo, estará dormindo quentinha amanhã à noite, não se mandando numa corrida de 112 quilômetros nas montanhas…
No dia da largada (ou melhor, noite)
Me veio a velha conhecida sensação de que as horas não passavam. Meus planos de dormir algumas horas no período da tarde foram por água abaixo: para meu desespero, tudo que consegui foi ficar fritando na cama. Resignado, pulei e parti na hora certa pra retirar o kit na escola da cidade. Lá encontrei um casal super simpático, responsável por um site polonês chamado Run and Travel. Batemos um longo papo sobre a prova. Peguei meu número de peito, 223, e minha pulseira. Naquele momento, em que fixam a pulseira no seu braço, bate aquela sensação de que, a partir dali, não tem mais volta, você está dentro da prova. Só faltava deixar com a organização uma segunda mochila, contendo os itens que seriam necessários a partir do km 55. Comemos uma pizza e voltamos ao hotel checar tudo e fazer os últimos preparativos.
Eu não estava sozinho. A Nana estava comigo, como uma verdadeira running crew, seguia me ajudando para que não me esquecesse de nenhum item. Parece bobagem, mas um detalhe nos equipamentos ou nas provisões pode virar um problemão durante a corrida. Vesti as roupas com as quais já estava acostumado, calcei o tênis já amaciado por muitos treinos, então me aqueci, dando atenção para os músculos que gostam de conversar comigo quando ainda estão frios. Finalmente, fomos caminhando pelas ruas de paralelepípedos até a largada.
Não demorou muito para que encontrássemos inúmeros atletas caminhando na mesma direção. Homens, mulheres, gente de todos os perfis. Ao avistar o pórtico de largada, bateu aquele frio na barriga. Mostrei os itens obrigatórios para o staff da prova e entrei no espaço dos atletas. Estava quente e isso me preocupava bastante. Sofro demais com o calor. Faltando dois minutos para a largada, dei um beijo na Nana e lembro de pedir que não esquecesse de me dar a bandeira do Brasil quando eu chegasse.
Doce, salgado e chip
Me alinhei logo atrás do primeiro pelotão quando o relógio marcava 11:59:30. Quando deu meia-noite em ponto, a buzina tocou! Dada a largada, excitado com aquela energia, saí pisando no acelerador. Eu me sentia forte, tentava controlar meus batimentos a fim de não perder controle sobre minha respiração. Os primeiros 6 km foram ainda dentro da cidade. rumo à primeira floresta. Eu estava em um ritmo que, cá entre nós, em uma prova como essa, não fazia parte da minha realidade. Imaginava manter o pique até pelo menos a primeira trilha na mata. Passei o primeiro PC em 12º lugar, o que não significava nada, a não ser para meu ego. Ele estava um tanto preocupado em figurar entre os cinco melhores na categoria. Meses atrás, quando estudava essa prova, minha ideia era finalizá-la entre os 30, algo modesto. Mas, como as coisas foram se encaixando durante os treinos, esse bendito ego ficou caçando assunto, dizendo: “Você consegue mais, você pode mais!”. Claro, ele nunca mede as consequências do que tais arroubos de entusiasmo podem me trazer.
E lá estava eu varando a madrugada e tentando encontrar meu equilíbrio. Coloquei na minha mente que era de extrema importância passar bem pela barreira do primeiro posto de controle, no km 20. Não demorou muito, lá pelo km 12, a primeira mulher me passou. Lembro das suas pernas desenhadas por muitos treinos de montanha, mochila leve, sem bastões. Sem dúvida, ali estava uma ultraexperiente corredora e com fome de vencer. Continuei sendo ultrapassado por outros atletas e, na minha conversa comigo mesmo, dizia: “Eis a primeira lição, aliás, reaprendi, voltei à matéria, pois era algo que já sabia: eu devia ter largado lá no fundão, no meu ritmo, e com certeza as coisas se encaixariam melhor”.
Cheguei ao km 20 e encontrei uma equipe de voluntários extremamente atenciosos, competentes e bem treinados. Funcionava assim: eles avistavam a chegada de um atleta, tocavam vários sinos (muito comum em provas na Europa), davam gritos de incentivo, enquanto uma voluntária fazia a leitura do seu chip com um equipamento super moderno. Depois disso, você poderia escolher o que queria: doces, salgados, frutas, e beber água, coca, isotônico. Tempo de parada: 2 minutos e 33 segundos.
Problemas à vista…
A minha lanterna não colaborava, estava iluminando muito pouco. E foi um descuido meu, pois esses modelos mais atuais são configurados via computador e a minha estava ajustada para o modo econômico. O resultado foi que no km 24, durante uma descida bem técnica, levei um tombo gigantesco bem num campo cheio de espinhos. Foi um tremendo susto, fiquei com um lado do corpo ensanguentado e coçando absurdamente. Sei bem que em provas de ultradistância enfrentamos inúmeros problemas. Depois da queda, mais um se apresentava. O sono começou a bater forte, a ponto de eu pensar em parar por uns 15 minutos e tirar um cochilo. Sim, isso mesmo, um cochilo! Mas fiquei com medo de parar e continuei brigando com o cansaço extremo, a lanterna fraca, a dor e a coceira causada pelos espinhos.
Torcia para que a luz do dia aparecesse logo. Olhei para o relógio: 3h:50am. Deus, ainda faltava uma hora para o sol aparecer! Cheguei no km 35 às 4h:28 da matina. Não demorou muito e as luzes das lanternas foram desaparecendo, sinal de que não eram mais necessárias, o que me deu um certo alívio. Naquela altura, eu já estava repetindo a mim mesmo: “Paz no caos, paz no caos…” como se, com esse mantra, pudesse reencontrar o equilíbrio.
O sol vermelho surgiu lindo no alto da montanha. Naquele momento até pensei em tirar uma foto, mas não estava na vibe. Pensei: “guarde essa imagem na memória e a compartilhe da forma que você sentir”. Já fazia um bom tempo que eu e mais dois atletas seguíamos num bom ritmo dentro de uma floresta formada por árvores imensas. O respeito ao ritmo era gigante, ninguém ousava atacar o outro. No final dessa descida, demos de cara com uma pista de asfalto e um voluntário indicando o caminho para mais um PC. Pude ver que alguns atletas que haviam me passado estavam um pouco à frente. Nos cumprimentamos com respeito. Já nas raias do PC, o mesmo procedimento: sinos tocando, gritos de incentivo, leitura de chip… Tomei água, coca, comi banana, bolacha água e sal e cafezinho. Tempo de parada: pouco mais de 2 minutos.
A corrida pelo Vale dos Pinos foi um dos grandes momentos da prova. Imagine percorrer lindas trilhas cercadas por árvores fenomenais e ao som de centenas e centenas de pássaros. Foi um momento de contemplação que me estimulou a alcançar a metade da prova bem mais rápido do que imaginava. Ali era uma parada estratégica, dizia eu a mim mesmo: “Cição, paz no caos. Ajuste a suua comida, a bebida e os equipamentos com calma. Comecei de baixo pra cima: troquei de camiseta, buff, escovei os meus dentes (sim, sempre que posso faço isso, me sinto renovado), arrumei cuidadosamente minha mochila e, por fim, perguntei para a voluntária se podia deixar minha lanterna junto com os demais itens que não usaria mais. Eu já esperava a resposta: NO! Agradeci e segui em frente.
O estradão aberto surgiu quando o sol estava a pino. No km 72, perto da cidade de Visegrád, eu caminhei bastante. Sim, caminhar faz parte de uma ultramaratona. Lembrei de treinos no Japi e em Itatiaia, sabia que não seria fácil. Ao chegar na cidadezinha, encontrei um equipamento que bombeia água do subsolo, algo comum naquela região. Havia observado um corredor bombeando água pra se refrescar, não tive dúvida e fiz o mesmo, meio que tomando um banho no meio da rua.
As bolhas nos pés acabaram surgindo, fazia alguns anos que não davam as caras. Nas duas últimas montanhas, com uma inclinação de mais de 30 graus, eu era de novo aquele carro 1.0 com o freio de mão puxado, enquanto na descida a sensação era de ter as pernas passando por um moedor de carne.
Nos 6 km finais, quase sucumbi. Minhas vozes internas quase não estavam dando força suficiente para eu continuar, exceto aquela da campanha na qual eu estava envolvido: entregar 100 litros de água potável no Nordeste a cada quilômetro percorrido. Gritava pra mim mesmo: “Vamos, porra, está acabando, Cição!”. De alguma maneira, a prova parecia querer que eu sentisse a sede e a dor dos nordestinos que não têm água pra beber. Naquela altura, o calor era de 36 graus. Bolhas nos pés, cansaço, desgaste emocional e psicológico. Mas nada me deteria, eu só pensava na chegada.
A chegada em Szentendre
Faltava 2 kms, quando eu praticamente só caminhava. Passou por mim uma mulher de cabelo curto gritando: “COME ON!” Era a motivação que eu precisava pra terminar dando um último gás, pois sabia que a bandeira do Brasil estava lá me esperando. Peguei a última rua no centro, segui em direção ao pórtico de chegada, já ouvindo os aplausos da multidão que acompanhava a prova. De longe avistei a Nana e tomei nossa bandeira nas mãos e, como sempre faço, a coloquei sobre a cabeça. Parei exatamente debaixo do pórtico e, antes de dar meu salto em homenagem ao voleibol (meu primeiro esporte), respirei fundo e disse a mim mesmo: “Eu não disse que você conseguiria, porra?!”. Dei um grito de alegria, ganhei um abraço e um beijo de alívio da minha esposa e logo estava com a linda camiseta de finisher nas mãos. É, pessoal, mesmo experiente em provas assim, incrível como aprendi e reaprendi ao longo desses 112 kms.
Distância: 112k
D+: 4.496m
D-: 4.491m
Total de desnível acumulado: 8.987metros
Meu tempo: 16:46:51
Minha colocação: 30º no geral, 16º na categoria
Tempo de Pálfy Márton, 1º colocado: 12:11:00
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