Por que você tem que correr tanto, Papai?

Publicado em 23 de outubro de 2013

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A pequena Valentina.
A pequena Valentina.

Minha querida Valentina,
Estou sendo honesto por causa de você e da Rebecca e sempre serei. Eu já tinha visto essa pergunta em seus olhos algumas vezes, mesmo antes dela sair da sua boca.
Mais do que seguir em frente para a próxima corrida, os meus sentimentos e as minhas preocupações têm dois nomes: Valentina e Rebecca.
Muitas vezes as palavras ficam paradas no ar. Aos cinco anos de idade, esperar duas horas por mim é algo interminavelmente longo. E isso, é claro, permite apenas em curto prazo, que eu compare com as horas de trabalho, onde saio pela manha e volto à noite, talvez a resposta seja a mesma para a pergunta que você acabou de me fazer: Filha, papai vai sair para fazer algo importante e volta depois.
Quanto mais velho fico, as horas mais felizes são aquelas em que estou com vocês no meu colo, ou fazendo algum tipo de brincadeira: pega-pega, esconde-esconde, desenhando ou vendo um desenho. Qualquer coisa com vocês.
A consciência de tempo ou de prazo de validade é algo que as crianças têm muito menos em relação aos adultos, e que bom que seja assim. Graças a Deus. Eu realmente fico aliviado em saber que essa noção do tempo não é palpável para você filha. Eu comemoro isso, mesmo sabendo que um dia você saberá que o tempo é implacável e não para um só segundo.
Pelo olhar em seu rosto, eu posso dizer que você já decidiu que eu não estava lhe ouvindo. Ou que eu não tenho qualquer intenção de responder a sua pergunta, mas eu respondo: Estou tentando responder melhor todos os dias, ou melhor, eu tento ser melhor todos os dias.
Muitos outros filhos, maridos, esposas, parceiros, pais, amigos fazem essa mesma pergunta aos corredores espalhados por todo mundo. Cada um deles tem merecido uma resposta honesta, assim como cada pessoa que é indagada é igualmente merecedora de seu direito de não fornecer uma resposta. Mas estou tentando para você.
Grande parte da minha resposta eu encontro nas sensações que você e sua irmã me enviam. Sabe como? Quando as vejo correndo pela casa ou pelo quintal. São as mesmas emoções que experimentei quando toquei em suas mãozinhas quando vocês nasceram. É a mesma emoção quando eu e a sua mãe testemunhamos seus primeiros sorrisos, as primeiras palavras, os primeiros passos, enfim testemunhamos as etapas exploratórias e são sentimentos semelhantes que me tocam quando corro por aí. Todas essas revelações iniciais e descobertas inspiradoras são ligações com um mundo tão impressionantemente belo, quanto este mundo que me é revelado por você, de  apenas cinco anos.
Sorrisos verdadeiros e genuínos e o coração feliz é a norma entre ultramaratonistas e isto ocorre sem sermos politicamente corretos, é como se tivéssemos nossos 5 anos, sedentos por descobrir novas paisagens, novas sensações, novos sentimentos. Esse franzir na sua pequena testa revela sua frustração em tentar, mas não conseguir compreender esta minha última frase. Mas eu não poderia estar mais feliz do que saber que você não precisa se preocupar com as restrições que este mundo nos impõe.
Eu vou dizer isso de outra maneira. Você não gosta de escuro, não é? Eu ouvi você falar com a sua irmã para que não apagasse a luz, observei sua postura quase exigindo que a luz fosse acesa imediatamente. Mas a vida é cheia de lugares escuros, Valentina, e eu também me canso desses lugares escuros. Por favor, não confunda o meu desejo e a minha paixão pela corrida como uma necessidade de fugir do mundo.
Há tanta coisa para amar… a nossa família, nossa casa, nossos vizinhos, a escola e o trabalho.
Você e eu conversamos muito sobre equilíbrio, tanto no sentido físico de evitar uma queda no parquinho ou para subir em sua bicicleta, mas para receber o segundo tipo de equilíbrio, que ajuda a nos sentirmos bem, que nos faz aproveitar ainda mais os momentos que estamos juntos é preciso acrescentar algo em nossa rotina que amamos muito fazer, assim como você ama suas brincadeiras, a escola, suas atividades, em meu caso, isso significa a corrida. Ao invés de servir como uma fuga, o ato de correr me impede de ficar tonto e de perder de vista tudo o que há para amar em um mundo às vezes muito louco… me dá este segundo equilíbrio. Posso até perder meu equilíbrio físico dando um passo em falso e cair durante uma descida, mas o resto da vida parece girar um pouco menos fora de controle, graças ao tempo que dedico na trilha.
Eu suspeito que não faz muito sentido o que estou falando, não é minha filha? Mas é verdade.

Valentina e Rebecca.
Valentina e Rebecca.

As Crianças
Lembrando o quanto eu amo a sua mãe, você e a são fáceis e não requer nenhum lembrete, mas as outras coisas podem ser esquecidas tipo: pagar as contas, ir ao supermercado, até mesmo o fato de não poder apreciar a nossa casa…
Duas, Quatro, Oito, Doze, 24 ou mais horas correndo e nos meus pés muitos quilômetros de esforço, faz com que eu tenha um jeito engraçado de fazer a minha casa parecer algo muito mais muito precioso.
Gosto das corridas solitárias, tanto quanto gosto daquelas compartilhadas. Tudo há perspectiva, tudo traz um benefício maravilhoso de correr muito, mas ainda não cheguei na resposta honesta à sua pergunta.
A resposta, voltando ao meu ponto anterior, é a alegria. A Inocência. Que, infelizmente, é passageira. Um compromisso irrestrito dos sentimentos com a natureza é o que mais me aproximam da inocência, que ajudam a restaurar a ingenuidade, que faz com que cada nova descoberta seja um milagre.
Estar correndo já é o suficiente, mas o acoplamento do ar livre com a corrida, me deixa ainda mais gratificado. Quando corro, não estou cansado. Quando corro, tudo posso ver, ouvir e sentir. Se vi, ouvi e senti de novo, experimento pela primeira, segunda, terceira vez… uma de cada vez.
Quando eu corro, Valentina, eu me sinto feliz. Eu realmente gosto de correr. Eu fico totalmente imerso na corrida, sem qualquer interferência. Não é algo que eu estou lendo ou vendo na tela da televisão e reconhecendo como felicidade. Está acontecendo ali dentro de mim. Dentro de mim e ao meu redor.
É a mesma alegria desimpedida que você experimentou – e seus pais amáveis – com os primeiros sorrisos, as primeiras palavras, os primeiros passinhos. É o brilho surpreendente em seu olho quando você acenou para mim antes do seu primeiro dia no jardim de infância e o orgulho correspondente que me trouxe lágrimas aos meus olhos.
Lembre-se de como você estava animada para me mostrar que você pode pintar sua família numa folha de papel ou de fazer uma linda coreografia no Dia das Mães. É isso, filha, a alegria que a corrida me dá.
Corrida para baixo, corrida para pintar novas trilhas ou percorrer antigas trilhas. É como voltar a ser criança e brincar de pega-pega ou de esconde-esconde.
Não é maravilhoso, Valentina?
Por favor, filha, nunca perca a sua mais recente conquista, a sua mais recente descoberta. Nunca deixe ninguém dizer que o seu sonho não será possível de ser alcançado. O mais importante pra mim é estar ao seu lado e da Rebecca, para ver o sorriso de cada descoberta e apoiá-las em cada momento difícil. Talvez vocês encontrem no tempo o prazer de correr e saber que a corrida será uma das fontes para que vocês possam voltar a serem crianças, que possam encontrar uma conexão, equilíbrio e amor. E eu vou estar lá para ajudá-las a comemorar.
Ahhh como estou ansioso para um dia lhe perguntar “por que você faz tudo isso?”, e quero ajudá-la a decidir melhor e como fazer muito mais.
Amo você para sempre e em cada momento.
 
Papai.

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