O ponto de partida

Tudo começou em 2009, no Cruce de Los Andes. Foi ali, em meio as cordilheiras chilenas, que descobri um novo mundo e uma nova paixão: as Corridas de Montanha. Nem bem tinha terminado aqueles 100k e meu coração já palpitava com uma nova descoberta, a meca das Ultramaratonas em Chamonix.

Cruce de Los Andes - 2009Cruce de Los Andes – 2009

Debutei no Ultra Trail du Mont Blanc em 2010, fiz 87k dos 100k do CCC. Naquele ano os deuses da montanha não permitiram que eu fosse até Chamonix, a chuva não deu trégua e a prova foi paralisada. Mesmo assim, fui considerado finisher e aceitei o título, pois sabia que me sobravam pernas e vontade. Fiquei tão encantado com a prova e ao mesmo tempo frustrado por não ter cruzado o pórtico de chegada, que eu resolvi voltar em 2013. Desta vez para fazer os 120k do TDS. Que prova! Sofri e chorei tanto que nem sei. Foi na raça e na fé que terminei aquele desafio e finalmente pude vivenciar aquela apoteose que é chegar em Chamonix e ser aplaudido por centenas de pessoas, que sensação!

2010 100K do CCC - embaixo de muita chuva
2010 100K do CCC – em baixo de muita chuva.

Um ano depois fiz o OCC, que corresponde os 53k, parte de Osieres passando por Champex e terminando Chamonix. E agora meus amigos, só me faltava ela, a épica e a mais importante prova do circuito, a UTMB, os 171km que correspondem a volta completa pela imponente Mont Blanc, passando por montanhas que à circulam nas fronteiras com França, Itália e Suíça. Com mais de 10.000m de desnível positivo, essa prova com certeza desafiaria todo o meu conhecimento em provas de montanha.

120K do TDS - 2013
120K do TDS – 2013

O caminho para chegar a UTMB não é nada fácil! Em um intervalo de 2 anos, é preciso ter 15 pontos conquistados em 3 diferentes provas de no mínimo 100k, todas elas acreditadas pelo UTMB. Além disso, devido ao grande número de atletas inscritos em todo mundo e a capacidade limite de recepção da Cidade de Chamonix, após conquistar os pontos, os inscritos ainda participam de um sorteio para conquistar espaço nesta prova.

Como um bom conhecedor do caminho, me aventurei. Cruzei pórticos na Mongólia Sunrise to Sunset  (Mongólia) , Pirineus (França), Tilcara (Argentina), Ultra Fiord (Chile), La Mission (Brasil) e, enfim, me credenciei para fazer a inscrição. Agora, precisava ser sorteado e sobre isso eu não tinha controle. Sou um homem de profunda fé, sei que o que é para ser meu, a vida providencia. Então foquei naquilo que tinha controle, minha preparação.

110k Pirineus - emoção a flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena!
110k Pirineus – emoção à flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena.
A prova foi individual mas foi a parceria e amor pela montanha que fez a diferença!
140K de Pachamama na Argentina me deram 6 pontos. A prova foi individual mas foi a parceria e amor pela montanha que fez a diferença.
A vitória nos 100k da Mongólia me deram 3 pontos e um Sonho realizado!!!
A vitória nos 100k da Mongólia me deram 3 pontos e um Sonho realizado!!!

 

os 110k da Hungria me deu 5 pontos - correr a noite não foi nada facil pelas terras dos petas Szentendre
Os 110k da Hungria me deram 5 pontos – correr a noite não foi nada fácil pelas terras dos petas Szentendre

O caminho

Foi duro! Horas e horas de musculação, de montanha e sacrifício junto com a família. Como esquecer das inúmeras vezes em que fui para o Japi, em Jundiaí. Fazia sol ou chuva, lá estava eu naquele lugar cercado de trilhas, montanhas e estradões. Fiz muitos treinos especiais nos picos Marins-Itagaré e o bate volta Passa Quatro-Marinzinho, todos nas montanhas de Minas Gerais. Em Passa Quatro rodei 100k noturnos (onde até assombração eu vi rs…) num frio que o esqueleto tremia.

Em um determinado momento, um amigo convidou para fazermos um treino fora do que estava especificado na minha planilha eu disse assim: “Busta, meu brother, o UTMB é um sonho que carrego há 10 anos e por isso, no momento em que eu alinhar para a largada na Praça do Triângulo na frente da igreja de San Bernard em Chamonix, quero ter a plena convicção que tudo, absolutamente tudo, foi feito e que eu sou merecedor de ali estar!”

Pode parecer uma certa arrogância, mas essa prova é o sonho de milhares de atletas do mundo inteiro. Nesta ocasião, eu já sabia que tinha sido sorteado, eu fui abençoado com este sorteio e teria que provar que era merecedor.

Teste de tênis, roupa, alimentação. Foram 6 meses ininterruptos acordando às 5 da manhã e levando meu corpo ao limite extremo até ouvir a sentença que acalentou o coração. Meu técnico Marcelo Sinoca disse: “Cição tu está pronto, vai lá e curta a jornada, Opalão”. Só pensei “Ahhh eu vou curtir, é certo que vou!”

 A paisagem

Cheguei em Chamonix uma semana antes da largada, preparado psicologicamente e fisicamente. Sabia que teria que trabalhar a minha ansiedade pois o UTMB é a última prova do circuito. A largada era apenas às 18 horas da sexta. Para baixar a ansiedade, realizei alguns trotes durante a semana, sempre acompanhado pela minha amiga Ligia Almeida, que também faria o UTMB.

Meu joelho esquerdo tinha sofrido com os pequenos treinos pré prova, quis voltar “a conversar” rs, mas procurei focar nas coisas boas. Na medida em que os dias iam passando, uma mistura de tensão e expectativa tomava conta de mim pois, todos os meus amigos ou já tinham feito ou fariam suas respectivas provas antes de mim.

Procurei interagir com a turma, mas sem cair muito no “oba, oba” pois, sabia que o desafio a frente era o maior da minha vida. Fazia exercícios de respiração, olhava e ajustava o meu planejamento de prova junto com os meus amigos, Elmo e Mario.

Ficamos todos em uma mesma casa e era impossível não se divertir. Todos os dias nos reuníamos na cozinha onde o Gerson (amigo de longa data) e a Fabi esposa do Elmo, tomavam conta do menu. Sempre regados de boa música e de boa prosa, nos distraímos falando sobre amenidades.

A ficha começou a cair no momento em que fomos buscar o kit e caiu de vez no momento em que coloquei a pulseira com a descrição da prova. Pensei: “É meu amigo, a hora está chegando, engole o choro! É hora de pôr em prática tudo o que você aprendeu nestes 10 anos de corrida de montanha. ”

A largada

O dia D chegou e com ele, revisei todos os detalhes para largada: mochila, hidratação, vestimenta, previsão do tempo. Ligia, eu e nossas equipes fomos caminhando devagar até a largada. Olhei para a igreja e pedi proteção a todos os corredores que ali se amontoavam. Quase instantaneamente, os Deuses da Montanha em um ato de poder absoluto, resolveram mandar um aviso através da chuva, para avisar que ali quem dá as cartas são eles.

Faltando pouco menos de 2 minutos para que aquela música, que esperei 10 anos começasse a tocar, “Conquest of Paradise” de Vangelis. A voz do locutor pedia para que os atletas batessem palmas de maneira ritmada, era uma sinfonia perfeita. O coração apertou e as lágrimas vieram ao meu rosto, que emoção! Me concentrei e cessei as lágrimas, o caminho era longo e eu precisaria de todo equilíbrio e foco para percorre-lo.  Ao meu lado, sentindo a mesma emoção, estava Ligia. Nos demos um abraço e a largada foi dada.

Aquela multidão de atletas, perto de 2.400, fez com que a nossa largada fosse bem lenta e continuou assim até saírmos de Chamonix. Ganhamos muitos aplausos e gritos de incentivo da multidão.

Primeiros kms

Passei bem tranquilo por Les Houches no km 9 e não demorou muito para eu dar de cara com a primeira subida. Não tive dúvidas, armei meus bastões junto com centenas de atletas e a sinfonia era única: “pléque, pléque, pléque”. O som dos bastões batendo no solo. Logo na primeira descida me lembrei do porquê as descidas machucam mais do que as subidas…

pensamento errado me fez sofrer durante os primeiros 30k dos 171k
Um pensamento errado me fez sofrer durante os primeiros 30k dos 171k

A chegada em Saint Gervais no km 21 foi bacana. A cidade estava especialmente pronta para receber os atletas. A gritaria era geral e as crianças com as mãozinhas esticadas esperando pelo nosso high five. Ao sair do PC abro meu celular para ver o próximo trecho e escuto: “É por aqui Ciçãooooo”, nada mais nada menos que Manu Vilaseca, uma das melhores atletas brasileiras, que hoje vive na Espanha e no dia anterior tinha mandado 140k em 24 horas fazendo um TDS perfeito. Ganhei o seu abraço e me lembrei do seu mantra “a cada passo dado é um a menos para a chegada”.

Uma confissão!  Até o km 30 eu estava meio de bode da prova, mentalizava apenas a chegada em Chamonix, até um momento em que a ficha caiu, sabe? Pensei com os meus botões: “Que porra é esta Cição? Que merda você está fazendo? Você sabe que essa prova tem 171k, não adianta ficar pensando no km 171 sem pensar no km 20, no km 30e assim por diante”. Como num passe de mágica, passei apenas a pensar em como chegar bem no próximo PC, errando o menos possível e deixando guardado o km 171 para depois.

Assim a prova foi evoluindo na mais absoluta paz no caos (literalmente). Cheguei em Les Contamines as 22h33, estava bem. O corte estava previsto para meia noite. Ali encontrei o Mario, líder da minha running crew/equipe de apoio, que além de ser um ultra experiente corredor, conhece muito bem como funcionam as coisas nos PC’s e também já havia me acompanhado nos Pirineus em 2018.

A noite chegara e com ela um receio de como o meu corpo reagiria ao sono, para a minha sorte eu passei muito bem a noite. Tendo apenas um pico de sono no fim da madrugada em Col de Seigne, km 65 da divisa entre França e Itália. Tomei um gel com cafeína que rapidamente deu um chute na minha bunda e fez com que eu despertasse. A minha headlamp foi o ponto alto da noite. Como um farol de caminhão, iluminava tudo e mais um pouco.

Durante a madrugada, o ballet formado pelas headlamps dos atletas era um espetáculo à parte. Olhava pra cima e via aquela faixa de luz serperteaneando a montanha e quando olhava pra trás eu pensava: “Putz, eu subi tudo isso!”

As passagens pelos PC´s eram rápidas. Aprendi com Nazário a refletir sobre o que pretende fazer antes de entrarem cada PC´s, inclusive se pretende descansar um pouco. São decisões fundamentais em uma prova de longa distância. Eu já avistava o PC e observava o tempo em que eu estava do corte, o que precisava reabastecer na minha mochila, o que comeria e beberia e o lixo que precisava descartar. Assim foi por La Balme, La Croix du Bonhomme, Les Chapieux e Col de la Seigne.

O dia começou a raiar em Lac Combal junto com um frio de bater os dentes. Sim, era alta montanha e corríamos ao lado das geleiras por um terreno cheio de pedras, aliás, pedras era o que tinha para qualquer lugar que você olhasse. Talvez por esse motivo é um dos lugares mais lindos da prova. Estava em meio a um vale onde podia ver o PC na parte baixa da montanha, longe da minha zona de conforto: pedras, pedras, descidas e mais descidas. Quando cheguei tomei uma sopa, comi pão, me hidratei e tratei de dar o fora dali o mais rápido possível. Queria chegar em Courmayer no km 80.

A metade da prova

Chegar em Courmayer era o meio da jornada, teria vencido a parte mais temida da prova. Comecei a descer rumo ao km 80, era uma descida insana e com uma inclinação absurda, não posso jamais esquecer de mencionar uma cena que vi com os meus próprios olhos: uma senhora loira (que me fez lembrar uma artista de nome Lorena McKennitt, escuta The Mummers´Dance com os olhos do coração) tocando uma arpa no meio da montanha, algo de arrepiar. Me arrependo de não ter parado para tirar uma foto.

Cheguei em Courmayer uma hora antes do previsto, quando passei pelo corredor das sacolas com o dropbag, reconheci os gritos dos amigos: “Vai Ciçãoooooo”. A emoção bate nessas horas, né? Só deu tempo de soltar um: “Vamos porra!”. Entrei no ginásio, que mais parecia um campo de refugiados: atletas dormindo, tratando ferimentos, comendo ou simplesmente conversando. Tratei de seguir o plano: me troquei, comi, fui ao banheiro, fiz uma rápida massagem com ajuda do Mario e segui rumo ao próximo PC. Tempo investido? Não mais que 40 minutos. Haviam atletas que precisavam ou que estavam parados ali há mais de 2 horas, cada um com a sua estratégia.

O calor infernal

A subida até o Refúgio Bertone foi um desafio. Comecei esse trecho ao lado de um ultramaratonista argentino, mais velho e bem mais forte do que eu. Com um humor peculiar ele me dizia: “Vamos hermano, fuerza” eu respondia: “Gracias hermano, adelante”. Não demorou muito tempo, ele desapareceu montanha a cima.

O calor consumia minhas forças, estava no Refúgio Bonatti chegando perto do km 90 e foi quando os dois principais problemas surgiram no caminho. O primeiro foi que não conseguia mais comer, o gel não estava mais descendo e o que serviam nos PC´s já estava me causando enjoo. Mandei um áudio para a minha equipe pedindo para que levassem um purê de batata até o PC Champex Lac, no km 123. Aquela combinação de calor e a falta de comida fez com que eu encarasse a pior subida da prova na base da raça. O Gran Cool Ferret não perdoava. Eram “só” 2,2 kms com 768 metros de subida e eu havia esquecido de passar vaselina nos pés. Aquele atrito somado ao calor custaram caro, quase levaram minha resiliência e a vontade de continuar na prova.

subidas intermináveis e um calor infernal
Subidas intermináveis e um calor infernal

Naquele momento busquei minhas âncoras, a base onde reencontro minhas forças: conversei com o meu pai, rezei pra caralho, pedi forças a minha mãe, pensei nas minhas filhas. Dentro de mim, eu sabia que visitaria o fundo do poço em algum momento durante a prova e a meta era, que quando isso acontecesse, eu usasse das minhas armas para sair de lá o quanto antes. Nesta subida infernal, cada passo era uma eternidade, outros atletas também subiam lentamente. No meio da subida, me deparei com um “fio” de água de gelo onde alguns atletas paravam para beber, segui o flow dos meus companheiros e tomei alguns goles de água geladinha, conforme ela ia descendo, sentia meu corpo esfriar e me agarrei naquela sensação agradável. Um pequeno presente que me ajudou a seguir.

Por vezes, fazia um exercício de respiração que aprendi com a Leka, massagista que tem na sua formação a prática da Yoga. Quando sentia que o coração bombava, tratava de respirar fundo, soltando o ar pela boca uma cinco vezes seguida.

Quando finalmente alcancei o cume e avistei a cruz do Gran Cool Ferret dei um grito: “Ahhhh filho da puta! Você não me derrubou, agora a parada é comigo! ”. Esquecer a vaselina estava custando um preço alto, não conseguia descer no flow em que estava acostumado. Então, até que eu consertasse as coisas, resolvi descer de maneira bem conservadora. Encontrei alguns atletas portugueses, trocamos algumas ideias e de repente dei de cara com o Mario, falei pra ele assim: “Pqp Marião! Que legal ver você aqui” ele só mandou rindo alto: “Vim lhe buscar Cição, brother é brother, né? Ele não resistiu, bateu no topo da subida do Gran Cool Ferret e desceu a piramba comigo.

O tempo começou a fechar e pouco antes de chegar em La Fouly no km 109 começou uma chuva torrencial de granizo. Coloquei o anorak, usei tudo o que tinha naquele PC.

Alguns imprevistos

Seguindo rumo a Champex-Lac recebi a notícia de que meu running crew não chegariam neste PC, a chuva que havia caído deixou a equipe ilhada, a água que descia da montanha danificou a ponte da cidade e a previsão para o conserto era as 6h da manhã. Ainda era 19h da noite. Eu meio que engoli o choro e pensei:” Reprograma tudo que agora o negócio vai ficar mais difícil” Cheguei em Champex- Lac com 27h55m de prova, o corte era as 2h30 da madrugada e eu havia chegado as 22h30, estava bem. Só o frio atrapalhava minha tranquilidade, pensa num frio e agora multiplica por 3! Doía a alma! Os amigos que me viram passando pela câmera da prova depois me disseram: “Cição, ali eu fiquei preocupado contigo, você parecia um zumbi!”.

Para minha alegria, dei de cara com o Rodrigo João, ultramaratonista que mora no Rio e que me deu uma força naquele PC, pois só o fato de ouvir: “Cição, precisando de qualquer coisa avisa!” já é um super alento. Tratei de comer, me hidratar bem e seguir rumo a Trient encontrar meu time, mas antes disso, teria que enfrentar a subida para La Giete…

Subi a La Giete muito bem: estava forte, tinha recuperado as minhas forças. Ali vivi aquelas coisas loucas de quem faz corrida na montanha, precisei de um pit stop number 2! Hahahaha! Estrategicamente, escolhi um momento que estava sozinho na trilha, sai do curso, fui para um cantinho nos meios de algumas árvores, desliguei a headlamp  e pensei: “Será que algum lazarento vai por luz em mim?”. Dito e feito! Não demorou muito e vi alguns atletas subindo e como num ato de marotagem jogaram suas luzes na minha bunda! Em gargalhadas, pensei: “Faz parte do jogo”. Recolhi o meu número 2 e levei num saquinho fornecido pela organização.

O PC em La Giete era numa casinha na montanha de teto baixo (sei disso porque dei duas cabeçadas no teto). Vi alguns atletas deitados meio que exaustos, era madrugada, tomei um “gorpinho” de café, reabasteci minhas garrafinhas e tratei de cair fora dali morro abaixo.

Ao chegar em Trient no km 140, me lembro do narrador falar meu nome e o ritmo de axé invadir o auto-falante, brinquei dizendo: “Brasil is here!”. Encontrei minha equipe, eles sempre faziam uma festa quando me viam. Meus pés queimavam, mas pelo menos o estômago estava em paz. Tratei de comer e me hidratar bem. Passei vaselina nos pés já doloridos e tratei de dar sequência na minha prova.

Cheguei em Vallorcine com 36 horas de prova, eram pouco mais de seis da manhã. Na minha cabeça eu achava que teria mais duas montanhas, foi quando meu brother Edinho me disse assim: “Truta só faltam 21kms, bora lá, uma montanha e você realiza seu sonho, vai devagar”. Quando ele me disse que era só uma montanha, me enchi de energia e dali segui firme rumo ao La Tête Aux Vents…

Meu relógio marcava 38h48m de prova quando atingi La Tête Aux Vents passava por uma trilha linda e única, que lugar abençoado! Em pouco menos de uma hora, chegaria ao penúltimo PC Laflégere e comecei a visualizar a chegada em Chamonix, as lágrimas transbordaram, junto com as orações de agradeciment.

Como um último ato dos deuses da montanha, aconteceu algo que até então nunca havia acontecido comigo, me distrai e perdi a entrada da trilha! Despenquei montanha abaixo, quando dei conta que não havia nenhum atleta e muito menos nenhuma marcação, pensei: “Putz, perdi a entrada da trilha, puta que o pariu”. Já muito cansado, tentei mais uma vez ver o copo cheio e pensei: “Você esperou tantos anos por esse momento, que os deuses querem que você fique mais um pouco na montanha” e comecei a rir de mim mesmo. Encontrei um casal jovem de franceses, vestido com roupas de ultramaratonistas, perguntei onde ficava a trilha correta, eles me mostraram onde eu havia errado. Resultado? Havia descido uns 2,5 kms morro a baixo e agora teria que subir. Eu ri, fazer o quê? Isto me custou uns 40 minutos pelo menos.

A chegada em Chamonix

Faltava bem pouco agora, uns 3,5 kms de morro a baixo e mais 1,5 km pelas ruas de Chamonix. Aqueles gritos de: “Bravo, Supér! Começaram a surgir com mais intensidade. Quando cheguei no asfalto e atravessei a passarela sobre a pista, dei de cara com o Elmo e com Edinho. Me entregaram a bandeira do nosso país, as lágrimas caíam e aquele filme especial de todos os treinos e horas de dedicação começaram a surgir na minha cabeça.

Passei devagarinho margeando o rio de Chamonix. Ahhh! Como eu sonhei com aquela sensação! Crianças esticando as suas mãos para me cumprimentar, adultos aplaudindo, uma euforia energizante. Nos últimos metros, avistei o pórtico da chegada ao som de aplausos e gritos dos amigos: “VAI CIÇÃO!”. A música que me recebia depois de mais de 170 kms era nada mais nada menos que Ave Maria de Schubert, imagina a adrenalina?!

a chegada mais apoteótica do mundo do trail
A chegada mais apoteótica do mundo do trail

Passei pelo pórtico balançando a bandeira do Brasil com todas as forças que me restavam. Ganhei abraços carregados de emoção, fiquei olhando pra igreja ainda sem me dar conta do que havia feito, beijava sem parar a minha pulseira, tentando tangibilizar o que havia feito. Era a maior prova da minha vida e uma das mais desejadas do mundo!52279339

Quando entrei no corredor para receber “La Vest” (o colete de finisher), me debulhei em lágrimas outra vez. Encontrei com os meus amigos, abracei todos, agradeci profundamente cada um deles por me acompanhar naquela jornada. Muita gente no Brasil também me acompanhou, sem dúvida foi algo gigante que fará parte da minha história.

Se me perguntam se valeu? A minha resposta é: “Valeu cada passo, cada momento de introspecção e de dor.” Sabe por que? Ser reconhecido pelas minhas filhas como um papai herói é algo indescritível.equipe

Amo esse esporte e peço a Deus que me dê saúde para sempre estar em condições de praticá-lo. Tenho como meta ser um Marco Olmo brasileiro, ultra maratonista italiano que corre até hoje tendo mais de 60 anos.

La vest tanto desejada - largaram 2.300 atletas e chegaram pouco mais de 1.000 - muito feliz por ter realizado este sonho.
La vest tanto desejada – largaram 2.400 atletas e chegaram pouco mais de 1.000 – muito feliz por ter realizado este sonho.

Obrigado pela paciência de ler até aqui.

Cição.
31/08/2019
10 anos de Montanha.

Em um jogo de detalhes, você precisa ter atitude de protagonista!

A Ultra Pirineu foi um imenso jogo de detalhes que começou muito antes do que imaginava.

Devido a uma cirurgia que fiz no meu pé no fim de 2017, comecei a preparação um pouco tarde para uma prova deste tamanho.

Alguns meses sem treinar e com muito medo de não voltar a correr, dei o primeiro trote somente no final de fevereiro. Ao conversar com o meu técnico sobre quais opções seriam possíveis em 2018, surgiu a Ultra Pirineu e seus temíveis 110 k com 6.798 m de subidas acumuladas.

No fundo no fundo, sabia que podia contar com a minha experiência para este desafio, pois, já se vão 9 anos em corridas de montanha. Mas ao mesmo tempo, me “cagava” de medo e sabia que não teria margem de erro na minha preparação.

Foram centenas e centenas de kms, milhares e milhares de subidas e descidas, vídeos e percursos estudados.

Sou feito de emoção e cicatriz…

A Salomon Ultra Pirineu é a prova mais prestigiada da Espanha, realizada em Bagá. Uma pequena e simpática cidade cravada nos Pirineus, essa prova já teve a honra de receber os principais nomes do Trail Mundial. Kilian Jornet e a sua namorada Emilie Frosberg detém o recorde. A embaixadora da prova é a principal atleta catalã, Nuria Picas, campeã da Ultra Maratona do Mont Blanc. E, bem,  eu fazia parte dos 1.000 atletas vindos de todas as partes do globo para a 10ª edição.

As 3:50 da madrugada toca o meu despertador, de fato não havia dormido bem. Com o sono leve, fui despertado algumas vezes. A primeira foi para atender um telefonema da minha filha e a segunda foi por conta de uma queima de fogos na cidade.

O despertador tocou e pensei comigo: “finalmente chegou o grande dia”, dou uma olhada no meu celular e “pipocam” mensagens incentivadoras de amigos torcendo por mim. Tomo uma chuveirada para despertar os meus músculos. A temperatura do quarto é agradável, dou uma última verificada na previsão do tempo e vejo que a chuva dará o ar da graça, lá pelas cinco da tarde. Decido usar camiseta de manga curta e um manguito.

Nesta prova, pude contar com apoio de uma equipe de anjos. Formada pela Sofia, Nana e Mario. Eles teriam a difícil missão de me acompanhar ao longo dos 110 km, me encontrando nos postos de controle ao longo da prova. De fato era um luxo ver caras conhecidas e que te querem bem. Segui rumo à arena de largada junto do Dr. Rafa, um querido amigo que esta prova me deu. Médico especialista em cirurgia de mão e um apaixonado pelas provas de montanha. Esta era sua 15ª prova no ano, o cara é um monstro. Chegando lá, já conseguíamos ver dezenas de lanternas acesas e sintimos aquela adrenalina que ronda toda largada.

Dr. Rafa na sua 15 prova do ano , Mario e eu!
Mario, Dr. Rafa e eu.

Dou uma última verificada nos meus itens obrigatórios. Me preocupo por não ter conseguido ir ao banheiro. Neurose de corredor. Mentalizo todas as passagens até a metade da prova.
Falta pouco menos de 5 minutos para largarmos e Depa, o locutor da prova famoso no mundo do trail por usar um chapéu de cowboy, solta a voz agitando os atletas e a musica de “Trevor Jones –  Promentory ” do filme “O Último dos Moicanos” toca arrepiando à todos, e não demora para eu ter os meus olhos cheios de lágrimas”.
Aquela ansiedade da lugar a uma imensa alegria ao ouvirmos a contagem regressiva pois, todos ali éramos iguais e só queríamos uma coisa: correr por várias horas e conseguir o feito de chegar em Bagà novamente.
Partimos rumo à subida mais longa da prova, ainda no escuro centenas de atletas se aglomeravam a fim de achar o seu espaço na trilha. O céu está repleto de estrelas e a lua se fazia presente, o que seria um prenúncio de um lindo dia.

Eyes on the prize! Horas de montanha pela frente!
Eyes on the prize! Horas de montanha pela frente!

Ainda no escuro, passo uma hora abaixo do que tinha planejado pelo Refúgio Rebost, o primeiro da prova. Trabalhando bem com os meus bastões, sigo focado rumo ao Refúgio Niu, o mais alto da prova com 2.520m de altitude. Os primeiros raios de sol surgem atrás das montanhas proporcionando uma das imagens mais lindas e o meu coração bomba de alegria. Passo por famílias inteiras e vários entusiastas da montanha que acordaram de madrugada para nos ver passando. Gritos de “Ânimo, Vamos, Vamos” serviam de combustível para mim.
O clima que impera entre os atletas amadores é de extrema cordialidade. O ritmo é forte, não se perde uma passada à toa. Tenho em mente que em todos os PC’s, vou usufruir de tudo o que o meu corpo esta pedindo, procurando levar o menos de peso possível na mochila. Avisto o Refúgio Niu e o frenesi das pessoas é imenso. Encontro a minha equipe, o que pra mim foi uma descarga de adrenalina. Ainda muito muvucado, pude aproveitar pouco do refúgio. Saí dali pensando: “fica ligado para não errar no próximo!”

chegando no refugio Niu a 2.500m de altura
Chegando no Refúgio Niu à 2.500m de altura

Começo a encarar uma descida extremamente técnica até o PC 3 Serrat, onde o horário de corte era as 15:30 pm. Procuro fazer uma descida cuidadosa, com movimentos calculados para poupar os meus quadríceps. As paisagens são lindas: cavalos selvagens surgem do nada, vacas com os seus sinos enormes no pescoço fazem o seu ballet. Elas nos olham querendo saber quem são esses intrusos em seu habitat?!
Chego ao PC Serrat as 11:13 da manhã praticamente junto com um dos atletas que havia particiapado de todas as edições desta prova e estava sendo homenageado pela patrocinadora em suas ações de marketing. Neste ponto, procuro caprichar na alimentação e na hidratação. Estava determinado a usar o menos de gel possível.
A próxima etapa era chegar no km 40. Com o passar das horas e sem tantos atletas juntos, o meu desempenho foi ficando mais constante, corria mais livre. Não demorou muito e revi a minha equipe que correu comigo alguns quilômetros. Normalmente eu andaria naquele trecho, mas com eles ali, arrumei forças e cheguei bonito em Bellver. Este PC ficava dentro de uma ginásio. Os atletas tinham que passar por um corredor cheio de pessoas nos aplaudindo. Fazia um calor infernal. Logo depois de sair de Bellver, considerei a parte menos empolgante da prova, tínhamos pela frente um estradão e um morro a cima até Cortais.
Cheguei lá e, na minha opinião junto com o Refúgio Niu, é um dos mais lindos da prova. Neste ponto procurei não demorar muito. Membros da organização da prova checaram alguns equipamentos obrigatórios, quando isto ocorre é porque provavelmente você vai ter que usa-los . E a minha experiência me dizia para ficar esperto pois, algo iria mudar. Comecei a subir sentido a Montanha Aguilló e me lembrava do conselho da Manuela Vilaseca de que aquela subida não seria nada fácil. O tempo começou a mudar rapidamente. Um vento cortante e alguns pingos de chuva me fizeram tirar o anorak da mochila. Me sentia um nada em meio aquela imensa montanha de pedras. O vento seguia na tentativa de rasgar a minha pele e a subida parecia interminável.
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Respirava fundo várias vezes, focava em mensagens positivas, tentava ver o copo cheio naquele momento, mas confesso que não foi nada fácil. Vários atletas me passaram. No fundo isso não importa, a não ser pelo fato de eu perceber que não estava indo nada bem. Nós, ultramaratonistas sabemos que por vezes vamos ao fundo do poço em provas tão longas e o segredo é não ficar abraçando o capeta por muito tempo, temos que sair rápido dali.  Meus passos continuavam lentos. Um fotógrafo fez o registro do momento, mas o meu número de peito estava coberto pela jaqueta, então dificilmente irei achar essa foto em que eu abraçava o “belzebu”. Ao final daquela subida, dei um sonoro berro “PQP”. Sentia um desconforto, precisava ir ao banheiro. Parei atrás de uma moita e juro que tentei. Como posso assim dizer…passar um fax? mandar um número 2? Sim bem isto, mas não consegui, rs. Só expus a minha bunda branca para uma meia dúzia de ultras verem.
Até chegar ao km 74 em Gosól, foi uma verdadeira epopéia. Aqueles 10 kms de descida pareciam uma maratona, não chegava nunca. Gosól era a principal parada da prova pois, ali encontraria o meu drop bag com itens essenciais para continuar a minha jornada. Algumas vezes tive dúvida se conseguiria seguir adiante. De fato correr uma ultra maratona é muito mais coração do que razão.
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Cheguei ainda de dia. Parecia um campo de refugiados, dezenas de atletas aglomerados. Uns descansavam, outros comiam e trocavam de roupa. Naquele ponto não consegui comer nada do que era oferecido. No meu planejamento, preferi comer a comida que tinha levado. O que me serviu de um grande alívio. Ali, exatamente naquele lugar foi uma mistura de decisões, enquanto o Mario me perguntava do que precisava, eu só pensava em tentar comer algo. Depois de não conseguir comer nada pois, o macarrão estava sem nenhum tempero, percebi que tinha linguiça espanhola, mas achei arriscado demais pra mim, rs. O Mario abre meu drop bag e fala assim: “Cição tem isso aqui”. Era uma comida especial, daquelas tipo de astronauta. Precisava de água quente para prepara-la, coisa que não tinha. Então, usei o caldo que a organização oferecia e coloquei dois generosos copos dentro da embalagem e esperei uns 5 minutos para comer tudo o que podia.

Em tempo, precisava muito ir ao banheiro e quando estava literalmente naquele momento, surge dois moleques fazendo arte pela janela acima da minha cabeça. Eles riam e falavam algo em um bom catalão. Só tive tempo de falar: “saiam daqui moleques FDPs” hahahahahaha. Era um sinal que estava vivo novamente.

Os dois próximos PC´s passaram rápidos, Estasen e Gresolet no km 86. A noite ja havia chegado e com ele a chuva misturada com neblina. De Gresolet a Vents não se enxergava um palmo à frente do nariz. Era uma descida muito técnica, single track mesmo sabe? Colocava a luz da minha headlamp no mais baixo, igual como o meu falecido pai, Seu Raimundo, fazia quando dirigia o seu Mercedão pelas rodovias do Brasil. Mas mesmo assim não fazia muito efeito. Procurei ficar atrás de dois atletas que desciam com maestria. Decidi que ali tinha tinha que dar o meu melhor pois, eu já tinha feito as descidas mais técnicas e importantes do Brasil. Era a hora de mostrar que tinha carta pra trucar, rs.
Ao chegar em Vents tive uma grata surpresa de encontrar com a minha equipe pela última vez. Era um PC no meio do nada, pequeno e friorento.  Troquei a minha segunda pele porque a chuva já tinha parado e lembrei das palavras da Sofia e da Manu. Tinham mais duas subidas para enfim chegarmos em Bagà, mas eram subidas de, pelo menos, 1h30m cada uma. Por estar com mais de 100 kms de prova e muitas horas acumuladas, enfrenta-las, não seria nada fácil. A primeira até o Refúgio St. Jordi, o último da prova, eu esperava umas 2h30m. Não olhei no relógio, estava focado em cada passo daquela subida, que pelo gráfico não parecia assustar mas ao vivo era interminável. Ao chegar, dei um lap no relógio e vi 1h26m. Pensei: “caracas Cição, você está forte. Agora falta somente mais uma e derradeira subida”.
Naquele PC  ingeri o último gel e coloquei bastante Pepsi (Por que não?) na boca e misturei com ele. Foi como uma bomba no estômago, quase vomitei. A voluntária da prova me ofereceu algo e só tive tempo de agradecer e sair dali urgente. Foi um horror.
De fato corremos mais com o coração do que com as pernas. Naquela altura ja tinha batido com a minha cabeça num tronco e pela força da pancada devia ser grave. Mas no fundo do meu coração, não queria parar. Apesar de muito tonto. resolvi continuar. Ali, corria praticamente sozinho. Encarei a penúltima subida suando grosso, procurava não dar bobeira em nenhuma passada. Era uma travessia de rio atrás da outra, cravava meus bastões no meio da água para me equilibrar​ e passava por cima das pernas evitando molhar os meus pés.
Naquela altura minhas pernas berravam, queriam parar e o meu coração falava para continuar. Para variar, conversava com o meu pai, com a minha mãe e as minhas filhas vinham na cabeça. Faltavam menos de 5 kms, era uma perna de asfalto e um pouquinho de trilha. Por fim, acabei alcançando alguns atletas.
Entrei na cidade e ali um leitor de chip apitou, avisando a todos os que me acompanhavam que eu estava finalmente chegando. Ao virar à esquerda pelo caminho mais rápido, tomei um sonoro aviso de que estava indo pelo caminho errado! Tinha mais um quilômetro e pelo menos uns 400 metros de subida, pensei comigo “isso era mesmo necessário?”. Ao terminar a subida, entrei no funil da linha de chegada e algumas pessoas aplaudiram. Uma mistura de emoção e alívio tomaram conta de mim quando vi o pórtico. Agradeci aos céus por tamanho feito realizado.

emoção a flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena!
Emoção à flor da pele, muitos meses de preparação e o exato momento de que tudo valeu a pena!

Só pensava comigo, meu Deus eu consegui!
É isto…

ahhh…alguns números do Salomon Ultra Pirineu 110k

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Cição.

 

Parece que foi por acaso que comecei a competir em corridas de montanha. Pelo menos, era o que pensava até escrever o meu livro.
Organizar ideias, resgatar momentos guardados nas prateleiras da nostalgia, tirar poeira de frases há muito tempo ditas. Tudo isso me levou a pensar em todo o trajeto que trilhei até aqui.
Eu vim lá de baixo, do pé da montanha. Passei minha infância e adolescência olhando para o cume, sonhando em um dia conquistá-lo. Queria ser um executivo, trabalhar de terno e gravata e ter um quarto com janela – morar na Cohab tinha dessas. Meus pais sempre me encorajaram a tomar o rumo da subida. “Tem de estudar para chegar lá”, dizia o meu velho, indicando a direção. Ele estava muito certo.
Dei minhas primeiras passadas cedo, porque meu sonho me cobrava isso. Quanto mais longe está sua linha chegada e mais cedo você se coloca a caminho, mais chances tem de sair vitorioso. Fiz minha escolha ainda moleque e tive de assumir o dobro da responsabilidade que uma juventude comum exigiria. Tempo ocioso? Só para dormir. E isso me sobra pouco, desde os meus 11 anos. Dividia minhas 24 horas entre estudos, trabalho e esporte. Na época eu dava o sangue nas quadras de vôlei. Literalmente.
Tinha de suar grosso para fazer tudo caber em um só dia e ainda encarar a montanha. Às vezes, o terreno ficava acidentado. Lodo, rochas, barrancos íngremes. Cada dia era um desafio mais difícil que o outro.

Sky running - KM VERTICAL - Brutalidade máxima - foto by Graciela Zanitti
Sky running – KM VERTICAL – Brutalidade máxima – foto by Graciela Zanitti

Dos trechos de faculdade, eu me lembro bem: na tentativa de conseguir meu primeiro estágio, entreguei o meu currículo e o vi descartado na lata do lixo. Fui demitido sem eira nem beira do meu segundo estágio. Quase não tive dinheiro para pagar minha rematrícula nos últimos anos de curso, e o esporte, que era uma rota alternativa, quase me escapou entre os dedos por causa do cigarro. Eu não podia desperdiçar aquelas chances.
Foram muitas as oportunidades que tive para desistir, mas se tem uma coisa que eu aprendi é que nada deve ser motivo para você abaixar a cabeça. Em uma ultramaratona, por exemplo, por mais preparado que esteja, a dor pode vir sem aviso. E ela o derruba. Nessas horas, ou você “engole o choro” – como diria a minha mãe – e vai pra cima, ou você desiste e volta de mãos abanando. O que nunca foi uma opção.
Não consigo imaginar onde eu estaria se tivesse ingressado nessa vida na categoria solo. Sempre tive muita sorte de poder contar com pessoas inspiradoras, dos amigos que me emprestavam roupas para ir à casa da minha namorada em Alphaville, ao chefe que me emprestou o carro zerado por quatro dias para acompanhar minha mãe no hospital. Logo após me contratar.
Foram momentos difíceis, mas que me fizeram reconhecer meus verdadeiros amigos e provar minha força. Foi encarando essa escalada que eu cheguei até aqui, no lugar da montanha que eu sempre sonhei conquistar.
Hoje, olhando para o livro pronto em minhas mãos, fico feliz de perceber que o topo era só mais uma etapa e que ainda há chão para subir. A vontade que me toma o espírito é a mesma daquele menino da Cohab. Ele não imaginava a ultramaratona em que estava se metendo, mas sabia que correr na trilha dos sonhos o levaria por uma vida incrível e repleta de pessoas maravilhosas.

Falta pouco pra largada. Estamos em uma ultramaratona em honra à Majestosa Pacha Mama, que nos leva a conhecer a Quebrada de Humahuaca, a cultura e os sabores de um povo que vive cercado por montanhas coloridas…

Igreja Matriz de Tilcara
Igreja Matriz de Tilcara

Situada no norte da Argentina quase na fronteira com a Bolívia, Patrimônio da Humanidade na categoria Paisagem Natural, foi essa a região que escolhi pra realizar o segundo desafio do ano.
Procissões, ritos e costumes… O quadrante atrai muitos turistas pela beleza das suas montanhas e também pela culinária. Humahuaca, ao lado de Tilcara e Maiamará, mantém antigas celebrações de fé e de culto aos ancestrais – a se destacar a procissão da Semana Santa em Tilcara, que põe mais de 50 mil peregrinos seguindo entre a cidade (2.450m de altitude) e a Igreja Al Abra de Punta Corral (3.800m).
Pacha Mama – A força das lembranças
Sei do medo de esquecer os detalhes desta história, do que significa esse rompimento de barreira – não apenas pela distância, nem porque se trata de uma prova de auto-suficiência.
É possível compartilhar algo depois de mais de um dia correndo? O que sentimos? O que vivemos?
Às vezes, ficamos na dúvida se o ato de compartilhar fará com que as pessoas consigam sentir o que sentimos. O vento na cara, o sol de rachar, o chão seco e o ar rarefeito que insiste em não preencher nossos pulmões. Podemos tirar fotos, fazer um ou outro vídeo, mas nada será igual à emoção que se vive ali.
Não será possível fazer com que os olhos dos outros chorem como os nossos chorarão, nem que o coração de cada um bata como os nossos baterão. Talvez isso seja demasiado forte pra nós, talvez a gente queira apenas de um olhar de aprovação diante de algo que estamos prestes a fazer.
Precisamos que as pessoas que nos amam aprovem nossos feitos, dos quais elas inclusive fazem parte, direta ou indiretamente. O compartilhar, portanto, carrega a esperança de se sentir acolhido por essas pessoas, pois são elas que nos dão força pra acordar no dia seguinte e continuar.
Também acontece de a memória ser traiçoeira fazer a gente se sentir bem, esquecer as dores e os percalços da trilha, lembrar só das partes eufóricas. Assim como deixamos pra lá os treinos péssimos, quando o que mais queríamos era voltar pra cama e descansar o resto do dia, e que lembramos fácil daqueles dias em que tudo se encaixou perfeitamente.
E temos sempre a sensação de que estamos piores do que no ano anterior, que não será possível alcançarmos as metas colocadas. A questão é que vamos ficando ansiosos só de pensar nisso.
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Capilla del Abra de Punta CorralA montanha dá todo o tempo necessário pra que a gente esteja só com a gente mesmo. Isso é bom. Ao mesmo tempo, ela nos inunda de emoções que pedem pra ser compartilhadas – afinal de contas, nunca estamos realmente sozinhos no caminho.
A hora da largada se aproxima. Tenho desenhado em minha mente boa parte do percurso: postos com água, postos de controle virtuais, altitudes mapeadas…

(Continua…)….texto feito a 4 mãos, dois corações e muito por mim e pelo Marcelo Sinoca…

Eu acredito que as oportunidades aparecem quando decidimos superar os obstáculos. A vida é cheia deles, o que aumentam as chances de erro e de queda. O que muitos não fazem ideia é que o aprendizado pode morar ali, nos intervalos de descuido.
Bati à porta de um deles ainda jovem, quando tentava apanhar uma pipa no telhado. Justo num feriado em que minha mãe, muito católica, havia me dado ordens expressas para ficar quieto, em casa. Era Sexta-Feira Santa.
Típico dia de sol. Meus amigos todos brincando lá fora, na vila. Os minutos de diversão fugiam de mim. Com as pernas formigando de inquietação, não pensei duas vezes quando tive uma brecha: me lancei em mais uma aventura inconsequente para correr atrás do tempo perdido. Coisa de moleque! O resultado? Uma fratura exposta no braço, intensas sessões de fisioterapia e meses longe das quadras de vôlei, esporte que tanto amava.
Esse tempo de muito sofrimento me abriu os olhos para o valor da determinação. No primeiro obstáculo que topamos, teríamos dado ouvidos a um médico que queria me submeter a uma amputação. Minha vida seria um bocado diferente se minha mãe não tivesse interferido com sua obstinação costumeira e assinado os papéis para me tirar daquele lugar, em busca de quem realmente me tratasse.
Desde então, essa é uma palavra que levo para qualquer reunião, trilha ou para encarar provações pela minha família e pelas pessoas que eu amo: determinação. Com uma dose de coragem e um pouquinho de água no radiador, esse combustível me levou longe e colocou minha vida num rumo que me dá orgulho – montanha acima. Literalmente.
Lembro-me como se fosse ontem o dia em que essas letrinhas se tornaram um sobrenome para mim. Eu me preparava para minha segunda trailrun, em Chamonix, França. À época, meu treinador me puxava ao limite, com um planejamento de dar inveja a atletas semiprofissionais. “Força, Cissão, e pau no cat!”, ele gritava. E aquilo penetrava nos meus ouvidos como um brado retumbante. Vibrava os meus tímpanos e injetava potência extra ao meu coração, que fazia a máquina toda correr ainda mais.
Nós falávamos muito de força e determinação naquele tempo. Era do que se tratava aquela expressão, que após despertar muitos risos em mim e meus companheiros começou a pulsar em cada batimento e escorrer pelo meu corpo a cada gota de suor. Logo virou meu nome de guerra nas trilhas. E era de se esperar que alguns quilômetros depois também me alcançasse na vida pessoal e profissional. Afinal, o que não conseguimos conquistar quando focamos no objetivo com coragem e dedicação?
Minha mãe e o trailrun me ensinaram que os altos e baixos da vida nos cobram essa determinação. Diante desse conhecimento, seria injusto seguir nessa trilha sem antes compartilhar o que aprendi com todos os que acreditaram no meu potencial e com pessoas que, por algum motivo, podem se encontrar em intervalos de reflexão, órfãos de um sentido para se recompor e seguir em frente.
Com isso em mente, o tempo, que eu já dividia entre o tênis e os sapatos, ganhou novos companheiros: papel, caneta e tinta. E, como em qualquer corrida, passei meses me preparando e me lancei a uma das provas mais excitantes e desafiantes da minha vida: escrever um livro.

Emoção a flor da pele ao ver tantos amigos reunidos!
Emoção a flor da pele ao ver tantos amigos reunidos!

Correndo na Trilha dos Sonhos é a medalha dessa jornada. Suas páginas reúnem relatos e reflexões sobre a minha experiência no esporte, no trabalho e na vida familiar, demonstrando que a disciplina e a vontade de vencer tendem a nos levar longe. Compartilhar tudo isso é o jeito que encontrei de abrir veredas e inspirar as pessoas a percorrerem o mesmo caminho.
livro
A vista é incrível. A cada passo, a montanha se revela adiante. Mas se engana quem pensa que ela é o destino. O desafio é superá-la e seguir em direção à próxima. Assim, surgirão as oportunidades para realizar nossos sonhos.
Portanto, caro leitor, se você está prestes a cruzar a marquise de largada, ou se já está com os dois pés nessa trilha, força. E pau no cat!
 

Existe um lugar-comum na vida de cada atleta em busca do aperfeiçoamento técnico sempre calcado no treino, na dieta e no descanso. Nem sempre essa rotina é fácil e prazerosa, principalmente quando existem paralelamente outras exigências e compromissos do profissional, pai, marido e dos demais papéis que vamos conquistando e assumindo no nosso caminho. Mesmo assim, é exatamente essa disciplina que doutrina o nosso corpo para atingir o potencial máximo.
No lado B dessa história, há outra batalha imprescindível no esporte, exigindo rigor igual ou maior que a do próprio corpo. Falo do controle psicológico e emocional que cada um de nós precisa ter em todos os momentos.

Meu psicológico estava aqui neste lugar e as minhas vozes interiores foram convertidas neste propósito!
Meu psicológico estava aqui neste lugar e as minhas vozes interiores foram convertidas neste propósito!

Na última maratona que participei, a Salomon Ultra-Trail na Hungria, muitos percalços encontrados durante a prova foram ultrapassados muito mais pelo preparo mental que me alimentava, do que pela resposta direta do meu preparo físico às condições do ambiente. Não que um seja mais importante que o outro, mas tenho plena consciência de que se tivesse sido guiado apenas pelo preparo técnico eu teria sucumbido ao calor, ao percurso noturno, à sede e à fome que fizeram parte daquele caminho.
Nessa prova, eu estava desde o início mentalmente muito forte. E a minha fortaleza tinha nome e sobrenome: a ONG Amigos do Bem http://www.amigosdobem.org/ . Apresentada por um amigo, o projeto dessa organização tem um trabalho específico no sertão nordestino, levando acesso à saúde, educação e infraestrutura aos moradores da região. Como uma pessoa com o olhar atento para o terceiro setor e como filho de imigrantes nordestinos, foi fácil esse projeto bater direto no coração. E rapidamente ele se tornou um desafio a ser conquistado na prova da Hungria.

Quilômetros suados transformados em água!
Quilômetros suados transformados em água!

Márcio, o amigo que me apresentou à ONG, me propôs realizar um crowdfunding, onde cada quilômetro percorrido seria transformado em um litro de água a ser doado para a região de seca no Nordeste. O resultado surgiu em menos de 24 horas, com todos os 112 quilômetros de prova comercializados e revertidos em água. Isso fez com que antes mesmo de chegar ao local da prova eu já tivesse um desafio e compromisso imensos para cumprir.

por onde os meus sonhos passaram
por onde os meus sonhos passaram

Eu me apeguei a isso e aos dois recados que escrevi para mim mesmo, colados no meu tênis de corrida – não desistir e água para quem tem sede – e que me acompanharam durante toda a prova. Toda vez que olhava para baixo na iminência de desistir, lá estavam os motivos para olhar para a frente e seguir. Isso me fortalecia mentalmente e me fazia resistir aos sinais de fadiga do corpo.

Amigos do bem atuando no nordeste brasileiro !
Amigos do bem atuando no nordeste brasileiro !

Esse lado “B” da minha vida de atleta também é decisivo fora das pistas. Seria ingênuo pensar que as dificuldades não nos acompanham em outros âmbitos. Mas, assim como o vigor físico não vem de repente, o psicológico também não. Com foco e perseverança ele é conquistado para enfrentar uma maratona, um impasse profissional ou até mesmo uma crise pessoal na boa e velha máxima da tentativa e do erro. O importante é sempre ter um espaço para escutar as próprias possibilidades de ir além. Afinal, assim como nas nostálgicas fitinhas cassetes de antigamente, ninguém escutava só as canções do lado A, certo?

Aquela vontade de voltar para uma experiência….
Ao longo da minha vida como profissional e atleta sempre questionei e procurei manter acesas as minhas motivações. Seria o desafio pessoal de provar a mim mesmo que posso ir além do que imagino. O que me faz seguir em frente? Qual o objetivo de ser guiado pelos propósitos que me forçam a me tirar do lugar comum de todo dia?
A maratona de Salomon Ultra Trail, na Hungria, realizada em junho deste ano, na pequena cidade de Szentendre veio para me mostrar que desafio e objetivo não se desassociam.

Foram 112 quilômetros, 16 horas e 46 minutos de altos e baixos durante todo o percurso nas montanhas próximas a Budapeste. Em alguns momentos, o que me sustentava focado, era o desafio de levar adiante a meta pessoal que me propus. Em outros, o que me fazia não desistir era o objetivo de cumprir um propósito que não envolvia apenas as minhas escolhas. Eu carregava junto comigo, a tarefa de converter cada um dos 112 quilômetros em litros valiosos de água para quem mais tem sede no Brasil: os moradores do sertão nordestino.
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Mesmo criando uma rotina de preparação árdua e constante com meses de antecedência, houve sono, cansaço, calor, bolhas nos pés, tombos e cãibras  Mas também, teve o incentivo de voluntários, o apoio da minha esposa como uma verdadeira running crew, a possibilidade de conhecer e observar um pouco da cidade e a chance de mergulhar no silêncio da madrugada e do dia amanhecendo a cada quilômetro percorrido. Além, da sensação inexplicável e irrecusável de cruzar a linha de chegada.
Nos 6 quilômetros finais da maratona, minhas vozes interiores quase não estavam dando força suficiente para eu continuar. De alguma maneira, a prova parecia querer que eu sentisse a sede e a dor dos que não têm água para beber. Meu desafio como esportista me provocou a ser minimamente empático com o lugar que não cabia a mim, mas a outro ser humano.
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Mais uma vez, estive diante do aprendizado e dos paralelos que o esporte sempre traz para todos os aspectos da minha vida. Entendi essas duas palavrinhas como molas propulsoras: desafio e objetivo. A satisfação de vencer uma “batalha” interna é tão grande, feliz e necessária, quanto a de vencer a luta que envolve muitas outras vozes além da minha. Poder conciliar ambas, é um privilégio e um compromisso.
Na minha vida de diretor comercial da Omint, uma das principais empresas de saúde e seguros do Brasil, as metas pessoais de crescimento e aperfeiçoamento me acompanham diariamente e seguem entrelaçadas aos objetivos e propósitos que abrangem o meu trabalho e de uma equipe de colaboradores. Sempre visando objetivo maior da empresa e dos valores seguidos e transmitidos por ela.
Szentendre, a cidade protagonista da minha última ultramaratona, poderia ser chamada de a cidade dos pássaros, pela infinidade deste animal por lá. E o voar de cada pássaro me trouxe a lição delicada de seguir o caminho, me desafiando nos objetivos pessoais e profissionais. Não pela vaidade de alcança-los, mas por compreender que este é o movimento natural que traz sentido para o que somos e fazemos.

Cição. 

Dez meses depois da minha última prova, lá fui eu encarar os 112k da Salomon Ultra Trail, nas montanhas ao redor de Budapeste. Decidi fazer essa corrida meio que por acaso, já que meu plano A era uma prova em Oregon (EUA). Cheguei até a fazer inscrição, mas com o mau tempo previsto por lá, o evento foi adiado e se tornou impossível na minha agenda. Em busca, de um desafio que se encaixasse no período das minhas férias, me deparei com a Hungria.
Foram meses de suor, com treinos de força, alongamento e jornadas solitárias ao longo das madrugadas. Testei novos alimentos e novos equipamentos também. Com a preparação e a periodização feitas, parti rumo à Hungria, mirando a pequena Szentendre, conhecida como a Cidade dos Artistas. Mas poderia se chamar tmabém de Cidade dos Pássaros, pois há muitos e cantam por lá o dia inteiro. Ou Cidade das Igrejas, já que existe uma a cada esquina e por conto do regime comunista ter combatido fortemente a religião, o país é um dos que possui proporcionalmente o maior número de templos, mas também o maior número de ateus.

Cidade de Szentendre
Cidade de Szentendre

A Salomon, patrocinadora master dos 112k, era também responsável pelas provas de 54k e 29,5k, além de uma corrida para as crianças. Devido à proximidade de Budapeste, a imensa maioria dos mais de 3 mil atletas, vindos de várias partes do mundo, chegou em Szentendre quase em cima da hora. Era o meu caso, e mesmo assim consegui reservar tempo para circular pela cidade, sentir os ares e captar a essência daquele lugar. Ao passar pela igreja de São Pedro e São Paulo, entrei e fiz minhas orações. Mas algo estranho aconteceu, acendi uma vela branca e a cera derretida ficara vermelha, o que por um momento me remetia a sofrimento e dor. Fiquei ali, intrigado. Pode isso na casa de Deus?! Até que uma senhora veio acender sua vela, que era branca também, e de maneira disfarçada, me pus a espiar. Ela acendeu, passou um pouco e vi que a cera derretida também era vermelha. Tudo bem, acontecia com todo mundo, não era um mau presságio. Mas essa senhora, eu ainda me ouvia dizendo, estará dormindo quentinha amanhã à noite, não se mandando numa corrida de 112 quilômetros nas montanhas…

No dia da largada (ou melhor, noite)
Me veio a velha conhecida sensação de que as horas não passavam. Meus planos de dormir algumas horas no período da tarde foram por água abaixo: para meu desespero, tudo que consegui foi ficar fritando na cama. Resignado, pulei e parti na hora certa pra retirar o kit na escola da cidade. Lá encontrei um casal super simpático, responsável por um site polonês chamado Run and Travel. Batemos um longo papo sobre a prova. Peguei meu número de peito, 223, e minha pulseira. Naquele momento, em que fixam a pulseira no seu braço, bate aquela sensação de que, a partir dali, não tem mais volta, você está dentro da prova. Só faltava deixar com a organização uma segunda mochila, contendo os itens que seriam necessários a partir do km 55. Comemos uma pizza e voltamos ao hotel checar tudo e fazer os últimos preparativos.
Eu não estava sozinho. A Nana estava comigo, como uma verdadeira running crew, seguia me ajudando para que não me esquecesse de nenhum item. Parece bobagem, mas um detalhe nos equipamentos ou nas provisões pode virar um problemão durante a corrida. Vesti as roupas com as quais já estava acostumado, calcei o tênis já amaciado por muitos treinos, então me aqueci, dando atenção para os músculos que gostam de conversar comigo quando ainda estão frios. Finalmente, fomos caminhando pelas ruas de paralelepípedos até a largada.
Não demorou muito para que encontrássemos inúmeros atletas caminhando na mesma direção. Homens, mulheres, gente de todos os perfis. Ao avistar o pórtico de largada, bateu aquele frio na barriga. Mostrei os itens obrigatórios para o staff da prova e entrei no espaço dos atletas. Estava quente e isso me preocupava bastante. Sofro demais com o calor. Faltando dois minutos para a largada, dei um beijo na Nana e lembro de pedir que não esquecesse de me dar a bandeira do Brasil quando eu chegasse.
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Doce, salgado e chip
Me alinhei logo atrás do primeiro pelotão quando o relógio marcava 11:59:30. Quando deu meia-noite em ponto, a buzina tocou! Dada a largada, excitado com aquela energia, saí pisando no acelerador. Eu me sentia forte, tentava controlar meus batimentos a fim de não perder controle sobre minha respiração. Os primeiros 6 km foram ainda dentro da cidade. rumo à primeira floresta. Eu estava em um ritmo que, cá entre nós,  em uma prova como essa, não fazia parte da minha realidade. Imaginava manter o pique até pelo menos a primeira trilha na mata. Passei o primeiro PC em 12º lugar, o que não significava nada, a não ser para meu ego. Ele estava um tanto preocupado em figurar entre os cinco melhores na categoria. Meses atrás, quando estudava essa prova, minha ideia era finalizá-la entre os 30, algo modesto. Mas, como as coisas foram se encaixando durante os treinos, esse bendito ego ficou caçando assunto, dizendo: “Você consegue mais, você pode mais!”. Claro, ele nunca mede as consequências do que tais arroubos de entusiasmo podem me trazer.
E lá estava eu varando a madrugada e tentando encontrar meu equilíbrio. Coloquei na minha mente que era de extrema importância passar bem pela barreira do primeiro posto de controle, no km 20. Não demorou muito, lá pelo km 12, a primeira mulher me passou. Lembro das suas pernas desenhadas por muitos treinos de montanha, mochila leve, sem bastões. Sem dúvida, ali estava uma ultraexperiente corredora e com fome de vencer. Continuei sendo ultrapassado por outros atletas e, na minha conversa comigo mesmo, dizia: “Eis a primeira lição, aliás, reaprendi, voltei à matéria, pois era algo que já sabia: eu devia ter largado lá no fundão, no meu ritmo, e com certeza as coisas se encaixariam melhor”.
Cheguei ao km 20 e encontrei uma equipe de voluntários extremamente atenciosos, competentes e bem treinados. Funcionava assim: eles avistavam a chegada de um atleta, tocavam vários sinos (muito comum em provas na Europa), davam gritos de incentivo, enquanto uma voluntária fazia a leitura do seu chip com um equipamento super moderno. Depois disso, você poderia escolher o que queria: doces, salgados, frutas, e beber água, coca, isotônico. Tempo de parada: 2 minutos e 33 segundos.

Problemas à vista…

A minha lanterna não colaborava, estava iluminando muito pouco. E foi um descuido meu, pois esses modelos mais atuais são configurados via computador e a minha estava ajustada para o modo econômico. O resultado foi que no km 24, durante uma descida bem técnica, levei um tombo gigantesco bem num campo cheio de espinhos. Foi um tremendo susto, fiquei com um lado do corpo ensanguentado e coçando absurdamente. Sei bem que em provas de ultradistância enfrentamos inúmeros problemas. Depois da queda, mais um se apresentava. O sono começou a bater forte, a ponto de eu pensar em parar por uns 15 minutos e tirar um cochilo. Sim, isso mesmo, um cochilo! Mas fiquei com medo de parar e continuei brigando com o cansaço extremo, a lanterna fraca, a dor e a coceira causada pelos espinhos.

A noite estava linda a luz da lua estava encantadora!
A noite estava linda a luz da lua estava encantadora!

Torcia para que a luz do dia aparecesse logo. Olhei para o relógio: 3h:50am. Deus, ainda faltava uma hora para o sol aparecer! Cheguei no km 35 às 4h:28 da matina. Não demorou muito e as luzes das lanternas foram desaparecendo, sinal de que não eram mais necessárias, o que me deu um certo alívio. Naquela altura, eu já estava repetindo a mim mesmo: “Paz no caos, paz no caos…” como se, com esse mantra, pudesse reencontrar o equilíbrio.

Paz no Caos!
Paz no Caos!

O sol vermelho surgiu lindo no alto da montanha. Naquele momento até pensei em tirar uma foto, mas não estava na vibe. Pensei:  “guarde essa imagem na memória e a compartilhe da forma que você sentir”. Já fazia um bom tempo que eu e mais dois atletas seguíamos num bom ritmo dentro de uma floresta formada por árvores imensas. O respeito ao ritmo era gigante, ninguém ousava atacar o outro. No final dessa descida, demos de cara com uma pista de asfalto e um voluntário indicando o caminho para mais um PC. Pude ver que alguns atletas que haviam me passado estavam um pouco à frente. Nos cumprimentamos com respeito. Já nas raias do PC, o mesmo procedimento: sinos tocando, gritos de incentivo, leitura de chip… Tomei água, coca, comi banana, bolacha água e sal e cafezinho. Tempo de parada: pouco mais de 2 minutos.
A corrida pelo Vale dos Pinos foi um dos grandes momentos da prova. Imagine percorrer lindas trilhas cercadas por árvores fenomenais e ao som de centenas e centenas de pássaros. Foi um momento de contemplação que me estimulou a alcançar a metade da prova bem mais rápido do que imaginava. Ali era uma parada estratégica, dizia eu a mim mesmo: “Cição, paz no caos. Ajuste a suua comida, a bebida e os equipamentos com calma. Comecei de baixo pra cima: troquei de camiseta, buff, escovei os meus dentes (sim, sempre que posso faço isso, me sinto renovado), arrumei cuidadosamente minha mochila e, por fim, perguntei para a voluntária se podia deixar minha lanterna junto com os demais itens que não usaria mais. Eu já esperava a resposta: NO! Agradeci e segui em frente.

marcações!
marcações!

O estradão aberto surgiu quando o sol estava a pino. No km 72, perto da cidade de Visegrád, eu caminhei bastante. Sim, caminhar faz parte de uma ultramaratona. Lembrei de treinos no Japi e em Itatiaia, sabia que não seria fácil. Ao chegar na cidadezinha, encontrei um equipamento que bombeia água do subsolo, algo comum naquela região. Havia observado um corredor bombeando água pra se refrescar, não tive dúvida e fiz o mesmo, meio que tomando um banho no meio da rua.
As bolhas nos pés acabaram surgindo, fazia alguns anos que não davam as caras. Nas duas últimas montanhas, com uma inclinação de mais de 30 graus, eu  era de novo aquele carro 1.0 com o freio de mão puxado, enquanto na descida a sensação era de ter as pernas passando por um moedor de carne.
Nos 6 km finais, quase sucumbi. Minhas vozes internas quase não estavam dando força suficiente para eu continuar, exceto aquela da campanha na qual eu estava envolvido: entregar 100 litros de água potável no Nordeste a cada quilômetro percorrido. Gritava pra mim mesmo: “Vamos, porra, está acabando, Cição!”. De alguma maneira, a prova parecia querer que eu sentisse a sede e a dor dos nordestinos que não têm água pra beber. Naquela altura, o calor era de 36 graus. Bolhas nos pés, cansaço, desgaste emocional e psicológico. Mas nada me deteria, eu só pensava na chegada.

sobre ter você comigo!
Sobre ter você comigo!

A chegada em Szentendre
Faltava 2 kms, quando eu praticamente só caminhava. Passou por mim uma mulher de cabelo curto gritando: “COME ON!” Era a motivação que eu precisava pra terminar dando um último gás, pois sabia que a bandeira do Brasil estava lá me esperando. Peguei a última rua no centro, segui em direção ao pórtico de chegada, já ouvindo os aplausos da multidão que acompanhava a prova. De longe avistei a Nana e tomei nossa bandeira nas mãos e, como sempre faço, a coloquei sobre a cabeça. Parei exatamente debaixo do pórtico e, antes de dar meu salto em homenagem ao voleibol (meu primeiro esporte), respirei fundo e disse a mim mesmo: “Eu não disse que você conseguiria, porra?!”. Dei um grito de alegria, ganhei um abraço e um beijo de alívio da minha esposa e logo estava com a linda camiseta de finisher nas mãos. É, pessoal, mesmo experiente em provas assim, incrível como aprendi e reaprendi ao longo desses 112 kms.
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Distância: 112k
D+: 4.496m
D-: 4.491m
Total de desnível acumulado: 8.987metros
Meu tempo: 16:46:51
Minha colocação: 30º no geral, 16º na categoria
Tempo de Pálfy Márton, 1º colocado: 12:11:00

Chego no km 42 pouco depois de 5 horas de prova, já tenho mentalizado o que fazer na passagem do posto de controle. Ali encontro a Nana, que me dá uma injeção de ânimo com a notícia de que sou o segundo colocado, atrás apenas do japonês voador.
Tão logo inicio a troca das meias, vejo o japa saindo pra segunda perna. Lembrei do significado da minha estratégia: “Mais vale uma parada bem feita do que uma mal feita – e ter de pagar o preço ali na frente”. Trato de fazer as coisas com calma, reabasteço a mochila com cuidado, como algo, dou um beijo na Nana e parto. Tempo investido: 5 minutos.
Tão logo saio da zona do acampamento, pego o caminho errado, o que me custa uns 20 minutos. Dá uma certa desanimada, caminho um pouco, respiro fundo, faço um xixi e, sentindo a mochila pesada, retomo minha corrida.
Faço as contas para o próximo posto de controle, resolvo esvaziar uma das minhas garrafinhas, de forma a reequilibrar o peso da mochila.
Chego no km55 e pergunto à voluntaria francesa quanto tempo o japonês voador estava na minha frente. “Uns 25 minutos!”
As batatas servidas nos postos de controle caíam bem no meu estômago e a nova marca de gel que a Cris havia me indicado também. Meu estômago sensível não tinha reclamado até aquele ponto e as pernas respondiam aos comandos do cérebro.
Começo a subir por uma trilha que margeia um estradão, as marcas nas árvores de cor verde indicando o caminho a ser seguido. A trilha de terra preta e de raízes que brotam do solo dão o tom naquela parte da prova. A meta agora é chegar no Jankhai Pass, no km 59.
No topo da trilha, saio no estradão novamente e está rolando uma espécie de feira. Não tenho dúvida, abro o bolsinho da mochila, saco uns tugriks (moeda da Mongólia), compro uma coca e sai arrotando aliviado.
Tão logo a descida começa, fico tenso. Não vejo mais nenhuma marca indicando aonde ir, volto duas ou três vezes até a ultima marcação e nada.
O mapa mostra que o ponto mais alto fica a 2.083m e eu estou a 1.950m. Não sei ao certo se tenho de atacar a montanha a minha direita ou seguir pelo estradão.
Olho o mapa, respiro fundo mais uma vez e resolvo seguir no estradão morro abaixo. Passa 1, passam 2, 3, 4kms e nada de marcação… Penso comigo, Meu Deus, se tiver de voltar tudo isso, será um martírio psicológico pra mim…
Paro um carro que vem na minha direção, e dentro dele uma família mongol. Aponto no mapa o próximo ponto que devo alcançar e escuto: “Urik, Urik!”, e um sinal de positivo. Sinto um certo alivio, mas ainda sigo com o coração apertado.
Finalmente, quando meu relógio aponta km 63, vejo numa árvore uma marcação. Meu corpo amolece, numa mistura de felicidade e descompressão, por não ter errado o caminho.

uma das marcações da prova!!
uma das marcações da prova!!

A sensação mais estranha não demora a acontecer. Seguindo as trilhas fechadas por entre as árvores, vejo um vulto no meu campo de visão. Por um momento acho que é uma alucinação. É o japonês voador. Vai devagar, bem diferente do ritmo habitual.
Pouco antes do PC Uren, no km65, passo por ele e sinto meu estômago reclamando. Reflito sobre o que tenho de fazer naquele posto de controle a fim de não perder tempo. Chego no PC, tiro a mochila das minhas costas, lanço mão do meu kit de primeiros socorros e tomo um sal de frutas. Abasteço com água, pego mais uma batata e parto rumo ao próximo posto de controle – tudo  isso na velocidade em que um corredor de 10 executa a sua prova.
Confesso que a sensação de liderar uma prova enche minha cabeça de bons e maus pensamentos:
1. Pqp… tô liderando uma prova pela primeira vez;
2. Minha família e meus amigos sentirão um puta orgulho se eu ganhar;
3. O nome do Brasil e o meu entrarão para a história;
4. Será que o japa está na minha bota?
5. Não olha pra trás!
6. Não viaja, você não ganhou porra nenhuma, falta muito chão, foca
no que você está fazendo!
7. A estratégia discutida com meu coach está dando certo.
Pensamentos que confortam, mas que, ao mesmo tempo, me incomodam. Pra ficar com os pés no chão, digo pra mim mesmo,
Quieta o facho, tem muita prova pela frente, o japa está na sua cola e seu objetivo aqui é ser finisher”.

foto tirada por um dos atletas da prova!
foto tirada por um dos atletas da prova!

 
Sem olhar para trás, faço do trecho seguinte o mais rápido da prova. Mantenho um ritmo tão forte ao ponto de o coração querer saltar da boca. Cruzo vários mongóis em seus cavalos pelo caminho, lembro de algumas cenas da série Marco Pólo que passa no Netflix, e que conta a epopeia do Império Mongol.
Meu segundo drop bag está em Modot Bulan PC, no km76.
Quando chego lá, me sinto um popstar. Vários mongóis querem tirar uma foto com o primeiro colocado. Penso comigo, Caraca, não ganhei nada, ainda tem 25k pela frente e essa turma querendo fazer selfie comigo? Sinto a pressão de ocupar aquela posição, sinto que o japa pode chegar a qualquer momento.
Resolvo relaxar um pouco, tiro algumas fotos enquanto começo a fazer algumas trocas programadas. Saí Salomon, entra o Hoka, sai a meia molhada e entra a meia seca, sai a camiseta surrada e entra camiseta seca e cheirosa… Reabasteço e pimba, pé na trilha.
Ainda no Brasil, recebi um envelope dos amigos Elmo, Fernando, Sinoca e Vinícius, que só poderia abrir neste PC. Volto pra prova ainda com ele lacrado, não quero perder mais tempo e, tão logo abro, sou surpreendido com uma linda foto da familia e os amigos, com algumas palavras de incentivo #paunocat, #noizxomcicaonamongolia… Lágrimas caem e aumentam meu desejo de seguir forte na corrida.
O PC seguinte é em Jankai, no km88, talvez o trecho mais exótico e lindo da prova, todo ele feito em trilha cercada por árvores e, à direita, um despenhadeiro de onde se pode ver o Lago Hosgvol.

Lago Hosgvol e a sua beleza!!
Lago Hosgvol e a sua beleza!!

Procuro manter qualidade, algumas vezes olhando pra trás a fim de verificar se o japa voador está chegando. É sério, ainda estou impressionado pelo ritmo alucinante que ele havia colocado na primeira parte da prova e aquilo me deixa inseguro.
Essa parte da prova parece não querer acabar. Procuro não dar trégua às minhas pernas e todo comando que vinha da minha cabeça eu procurava seguir. Quando finalmente a floresta acaba, escuto os voluntários gritando e batendo sinos.
Chego no PC morto, mergulho duas fatias de pepino no sal e mastigo, sinto o sal percorrer meus músculos, que por sua vez me respondem assim, “Anda logo, Cição, que nós não iremos aguentar muito tempo”.
É preciso ter a cabeça no lugar, pois os últimos 12km são compostos por um estradão – um sufoco, ao menos para mim. Prefiro subir ou descer, ficar no plano não me é nada fácil. Quando esses pontos chegam, procuro me espelhar naqueles que mandam bem nesse tipo de terreno, como Fernandinho, Míni Cooper, Lígia… Penso sempre que eles estão ao meu lado, me incentivando.
Naquele momento prova, corro em campo aberto e, portanto, eu era a caça, não mais o caçador. Se o japonês visse meu estado, provavelmente saberia como me caçar.
Tento encaixar um ritmo confortável e quando as pernas deixam de responder, passo a usar a força mental, procurando focar em algum objeto a minha frente – uma placa, uma ponte, um animal – e digo pra mim, Vamos, Cicão, simbora correr até aquele ponto! Chegando lá, caminho um pouco e logo acho outra pequena meta a ser alcançada e assim vou seguindo… Nesse trecho, olho pra trás um milhão de vezes!
Estou cansado, morto, mas sabendo que dou tudo de mim, não 100%, mas 110%.
Quando entro no acampamento e percebo que não posso mais ser alcançado, faço um vídeo, chorando pra cacete. Passa pela minha cabeça, ainda sem entender direito, que um sonho estava se tornando realidade.

Meu momento - Ayrton Senna do Brasil
Meu momento – Ayrton Senna do Brasil!!! – photo Khasar Sandang

Caracas, o Brasil vai ganhar! Sim, eu vou ganhar a mesma prova que havia visto no canal OFF há 3 anos. Sim, o locutor vai falar meu nome e o nome do meu país!
Corro, corro muito, e a poucos metros da chegada, vejo a bandeira do Brasil delicadamente repousando no solo que cavaleiros mongóis percorrem há milhares de anos.
Seguro ela em minhas mãos e, como o Senna fazia, faço ela flamular sobre minha cabeça e meus ombros. Escuto gritos, assobios, sinos, paro embaixo do pórtico e aponto pra cima, avisando a todos: Preparem as máquinas, vou saltar! E salto, homenageando meu outro esporte favorito, que é o voleibol. Lágrimas caem dos meus olhos quando vejo a Nana me filmando, toda orgulhosa.

Aquele momento de redenção, felicidade - 100km depois em 12h59m!!
Sempre termino as minhas provas fazendo uma menção ao esporte que serviu de base na minha vida que foi o voleibol! – photo by Khasar Sandang

Grito, pulo, vibro com todas as minhas forças, cumprimento todos e, por fim, dou um salto no lago Hosgvol. Um momento de benção pela vitória. Sim, vim de muito longe, só tinha uma chance e graças a Deus fui feliz.

Sonho realizado!!!
Momento de redenção – 100km depois – Sonho realizado – Que legenda merece este momento??? – Photo by Khasar Sandang

O meu muito obrigado ao meu técnico Sinoca e ao Gabriel que cuida da carcaça. E aos amigos queridos e a minha família o meu eterno carinho, respeito e amor.
Bons treinos e paunocat!!!
Orgulho master: http://ms2s.dk/ (site da prova)
Abraços
Cição

Desperto às 2:15am, quinze minutos antes do toque de despertar Mongol às 2:30am. Não havia conseguido dormir naquela noite, tamanha era a minha ansiedade. Todos meus sentidos estavam a pleno vapor. Fora da minha tenda, ouço passos mais acelerados e vozes em idiomas que não entendo.

Sinto as partes do meu corpo, meus pés, a unha do meu dedão (que sempre quer dar o ar da graça), pernas, joelhos, coxas, sinto meu peito inflando a cada respiração. Minha cabeça está tranquila, calma como as águas do Lago Hogsvol.
Como sempre faço, peço proteção com uma prece. Começo a me montar para o inicio de uma longa jornada, lambuzo meus pés de hipoglós, coloco a meia surrada pelos treinos, visto a bermuda testada inúmeras vezes, assim como a camiseta costurada – “aquela que chamamos de jogadeira, sabe?”. Finalmente, calço meu tênis favorito e ponho o buff na cabeça.
Pergunto pra Nana se vai dar pra ela correr os 42k e me vem a noticia que temia receber: ela fez um sinal de negativo com a cabeça, estava sem forças devido a uma intoxicação alimentar. No fundo no fundo, já estava me preparando para isso. Para confortá-la, disse que correria por nós.
Fui ao banheiro, tomei café junto com os demais atletas, voltei ao banheiro e parti pra minha tenda, precisava caprichar no aquecimento e encontrar meu equilíbrio.
Pelo 18º. ano consecutivo, a largada da prova iria acontecer no Acampamento Toilogt às 4am. Desta vez, seria sob chuva. Representando o Brasil, me junto aos atletas de mais de 25 países, entre eles os mongóis, um japonês e um chinês, os favoritos pra ganhar a prova.
Começa a contagem regressiva… 10,9,8… Desta vez fico no meio pelotão…
7,6… BUUUMMMM… Um pelotão formado por mongóis e japoneses parte em disparada.
Era preciso ter muita atenção nos primeiros 3km, pois estávamos dentro de uma floresta fechada, sob chuva. Sigo com meus passos, tomando cuidado pra não pisar em falso e muito menos em alguma raiz, pois um pequeno acidente pode ser o fim da prova.
Tenho meus olhos abertos ao máximo. Na minha frente segue um dos mongóis. Meu coração parece que vai pular do peito, tamanho é o ritmo dos batimentos.
Sinto minhas pernas fortes e, na primeira oportunidade, acabo passando pelo mongol, talvez um erro da minha parte, pois um local deve saber bem o caminho. Salto galhos, pulo raízes e, quando a floresta termina, tomo a trilha da direita, quando o certo, como iria descobrir, seria pegar a trilha da esquerda. Acho estranho, não vejo mais as marcações da prova, até que um cavaleiro mongol, um dos voluntários, grita me indicando o caminho certo.
Pego um estradão rumo ao PC Chichee no km12 antes da primeira montanha. Logo alcanço e passo o atleta da Mongólia. No meu campo de visão há um atleta magro, corpo forte, todo paramentado com os produtos que os melhores ultras usam. Sem dúvida, um atleta disposto a dar seu recado.
Quando o alcanço, vejo que se trata de um japonês que, durante os dias que antecederam a prova, circulava com camisetas das provas que havia feito, todas com mais de 50k. Em silêncio, corro ao lado dele por quase 7km. Ouvimos apenas o barulho de nossas passadas e nossas respirações, como uma sinfonia. Passamos pelo primeiro PC em Chichee sem sequer pararmos.
Em alguns momentos, tomo sua frente e, não demora muito, lá está o japonês voador ao meu lado. Quando a subida começa, ele simplesmente dispara na minha frente.
Resolvo seguir no meu ritmo, trotando no começo das subidas e marchando firme quando elas ficavam mais íngremes.
Lá pelo km17, passo pelo atleta mongol campeão do ano passado, faço um positivo a fim de saber se está tudo bem e ele me responde com o mesmo sinal.

Ao lado do último campeão da prova dos 100K - o Mongol - Tumembayar Shagdar
Ao lado do último campeão da prova dos 100K – o Mongol – Tumembayar Shagdar


É um prenúncio de que algo diferente está por acontecer. Penso comigo, Cição foca apenas na sua estratégia, esqueça qualquer outro tipo de pensamento.

Chego ao ponto mais alto da prova e lembro que havia prometido a meu técnico que faria uma foto ali para mandar aos amigos, mas infelizmente ainda está escuro, não fica boa – tudo bem, promessa é promessa!
Quando o primeiro downhill começa, vejo as luzes da headlamp do japonês e de mais um atleta indo bem mais a frente e penso, Esses dois não estão pra brincadeira… E nem estavam os atletas atrás de mim, pois na minha o campeão do ano passado e o atleta chinês vinham na minha bota.
Começo a me divertir na descida. Me sinto bem e, nesse momento, resolvo dividir a prova em 10 provas de 10k, para dessa forma poder reagir positivamente a cada etapa completada. Bato no peito, abro as mãos e fecho os dedos contando as etapas finalizadas, dedicando cada uma a alguém da família ou a um dos amigos.
Já no PC Ongolov, no km 23, o dia começa a amanhecer. Passei pelo posto pegando uma batata com sal e parto rumo ao segundo pico. A chuva havia parado e o clima é gostoso pra correr, faz um certo friozinho.
Havia perdido de vista os atletas que iam a minha frente e os que estavam atrás também. Não demora para que eu alcance a segunda montanha.
Quando o dia clareia, posso perceber o porque de a prova ter o seguinte slogan: “The world’s most beautiful 100k run”.
Corro cercado por montanhas, através de trilhas cobertas por flores e, ao fundo, toda a imponência do Lago Hogsvol.
Perto do km 35, passo por uma árvore que os mongóis chamam de “Ovo”, o que para o xamanismo tem um significado de paz, proteção. Segundo as tradições, toda vez que alguém avista uma dessas, é preciso dar três voltas ao seu redor pra que se tenha proteção.
Naquele momento, não tive dúvida, lá fui eu dar minhas três voltinhas.
E nessa, vejo passando um dos atletas da Mongólia, passando direto, aí pensei comigo…Ué, ele não vai dar as três voltinhas? Vai porra nenhuma! Passou por mim que nem uma bala e deve ter pensado, “Esse cumpridão aí parece maluco”. 

Arvore mística "OVO" - as 3 voltinhas? só eu dei rs!
Arvore mística “OVO” – as 3 voltinhas? só eu dei rs! – Mongol volta aqui meu filho!

continua…